Artigo do nosso consultor D'Silvas Filho, inserido na sua página pessoal na Internet, onde volta a insistir na urgência de Portugal publicar também o seu Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa devidamente actualizado — condição "sine qua non" para a entrada em vigor do Acordo Ortográfico, de forma "rigorosa e não oportunista".
Constou que o Governo quer que o novo Acordo Ortográfico (AO 1990) entre em vigor rapidamente para Portugal, e que será marcada uma data em Junho deste ano.
Note-se que, para isso, conta em Portugal só com o apoio dos trabalhos comerciais já existentes para o novo Acordo Ortográfico: dois dicionários, não coincidentes nas soluções, e um corrector ortográfico, também comercial, acabado de publicar.
Esta decisão parece-me prepotente e oportunista. A democracia não pode ser uma politicocracia desagregadora, indiferente aos valores nacionais e ao ideal democrático.
Prepotente
Alguns políticos (com honrosas excepções) quando chegam ao poder, entendem que o país pertence ao partido ou à coligação que governa na altura. Mudam o que estava satisfatório, voltando tudo à estaca zero. Salvo em questões ideológicas, tal atitude é inadmissível quando está em causa o interesse comum. A pressa do Governo, quanto ao novo AO, pode ser derivada do receio sobre o que outros governantes irão fazer, numa questão considerada importante.
Oportunista
Um Governo `verdadeiramente empenhado no interesse do país e não do partido ou da coligação que o sustenta e dos lóbis que o ali-menta´ evita de tomar decisões apressadas em fim de mandato, para não comprometer o futuro Governo que saia das eleições e permitir o amadurecimento necessário dessas decisões. Sobretudo em questões estruturantes ou que comprometem o futuro. Mas, isso sim!..., alguns Governos nessas alturas até parece que entram em frenesi de decisões, para conseguir factos consumados. O caso Freeport não é só um desprestígio para a justiça (tantos anos…) ou uma suspeita de corrupção (não se sabe de quem…), é também um exemplo de deci-sões tomadas em derradeiros momentos de um mandato.
Dispenso-me de apreciar os projectos megalómanos do actual Governo e faço-lhe o benefício da dúvida de que não se destinem unicamente a favorecer lóbis. No entanto, não obstante ser um defensor do acordo, já não me dispenso de condenar veementemente a sua decisão de marcar a entrada em vigor do novo AO, se o fizer em fim deste mandato.
É que convém mesmo, agora, que tal decisão seja adiada. Não me canso de lembrar que em Portugal não há um vocabulário oficial actualizado que faça lei na língua, como houve no passado (exemplo: o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, datado de 1940, o nosso VOLP, sigla seguida também pela Academia Brasileira de Letras [ABL] para o seu Vocabu-lário).
Sem uma lei na língua (como o Brasil tem tido sempre ultimamen-te), ninguém em Portugal se entende, pois surgem soluções arbitrá-rias, como já apareceram nas acima citadas publicações comerciais.
Ou, repito mais uma vez, podemos ficar sujeitos ao VOLP brasilei-ro, com a sua ortoépia peculiar e as suas soluções preferenciais. Por exemplo, no VOLP 2009, da ABL, já em meu poder, verifico que estão registados os vocábulos "coerdeiro" e "úmido", sem variantes. Ora será assim que vai ser para Portugal e para toda a lusofonia?
As pessoas extremosas com a língua não se têm cansado de apon-tar a necessidade de realização do nosso Vocabulário actualizado para o novo AO, estudado com as características do português europeu. Os governantes fazem orelhas moucas. A Academia das Ciências de Lisboa queixa-se que não tem tido verbas para esse empreendimen-to; que se saiba, não há nenhuma entidade encarregada oficialmente de o fazer.
Quando as pessoa que amam a língua lembram que este vocabulá-rio português é necessário para a execução do Vocabulário Comum previsto no preâmbulo do AO de 1990, os apressados escudam-se no impreciso argumento da Academia Brasileira de Letras: "de que no Preâmbulo só se exige um vocabulário comum das especialidades". O que não é nada o que está escrito e não condiz com o espírito do AO de 1990, que pretende a unificação da língua e um Dicionário Comum, onde todas as variantes da lusofonia sejam legais (logo, por exemplo, os vocábulos do português europeu "co-herdeiro" e "húmi-do", como aparecem em todos os nossos trabalhos sobre o novo AO).
É óbvio que a pressa oportunista pode prejudicar a defesa das nos-sas soluções preferenciais nesse Dicionário Comum. Mas alguns dos governantes de ocasião, escudados na maioria parlamentar, podem entender que quem manda na língua são eles; e, como as pessoas que cuidam da tradição linguística em Portugal são uma minoria, as minorias não contam na politicocracia.
Politicocracia desagregadora
Uma política agregadora procuraria unir o povo num objectivo nacional de sacrifício pelo bem comum e de salvação da Pátria. E a salvação está na integridade, não no laxismo (por exemplo com a lín-gua), ou na fuga aos deveres, por sistema usual neste país.
Repare-se que, no fundo, é esta generalizada fuga aos deveres que está a afogar a justiça. Em vez de se aumentar indefinidamente os meios da justiça para fazer face à infinidade de faltas dos cidadãos , dever-se-ia catequizar o povo para a honestidade, castigando muito, mas mesmo muito, duramente as desobediências à Lei e o mau exemplo, sobretudo dos dirigentes. Os governantes ainda não enten-deram que são também culpados, na sua benevolência, por este sur-to de banditismo, ao mesmo tempo que despejam as prisões?
Em vez de no nosso ensino se aceitarem levianamente, como natu-rais, os erros ortográficos a favor da mensagem, dever-se-ia, inver-samente, considerar que a mensagem fica seriamente comprometida no erro gramatical e que este deve ser punido como lesa-gramática, ou mesmo lesa-pátria, por ofender o património linguístico.
Indiferente aos valores nacionais
Respeitar a bandeira, o hino nacional, ou festejar o dia de Camões, dia nacional, que já se disse ser da raça, não envolve comprometi-mento material particular; todavia cuidar da língua, pelo contrário, exige um investimento constante, especial (no ensino do povo, na protecção contra os desmandos, na conservação da história das pala-vras, na divulgação e defesa da importância do idioma português no mundo).
Ora, sendo a língua um valor nacional, há políticos, como já disse noutro artigo, que parece terem considerado que o empenhamento na língua envolveria o risco de lembrar o regime nacionalista, que muito se empenhou nos valores nacionais. Daí que não tenha havido investimento satisfatório na língua neste regime como houve nesse outro. E daí que agora o "português europeu" esteja em vias de ser ignorado completamente nas suas características peculiares, com a entrada em vigor imponderada do novo AO em Portugal.
Democracia longe do ideal democrático.
"Democracia é a regra do povo, pelo povo e para o povo", disse Lincoln no seu famoso discurso em 1863. Aqueles que representam os partidos na governação do país deviam não esquecer nunca que é o povo que efectivamente representam, no nobre ideal democrático, não as corporações partidárias.
Ora o povo português ama o seu país. A profusão de bandeiras que Scolari conseguiu desfraldar nas janelas é uma prova disso.
O povo ama também e respeita a sua língua. Insurge-se contra os estrangeirismos, o pouco exigente ensino da língua nas escolas, o menor escrúpulo da comunicação social. "Ele nem português sabe", dizem nos erros gramaticais, que não perdoam a ninguém, e muito menos quando se trata dum governante.
O povo português gostaria que cuidássemos da língua portuguesa como faz o Brasil, que conseguiu a uniformidade da língua em todo o seu imenso território e investe generosamente nela (quanto não terão custado as sucessivas edições do completo Vocabulário da Academia Brasileira de Letras e agora o seu monumental VOLP?). Uma sua língua que continua a chamar língua portuguesa...
Alguns dos nossos responsáveis partidários deviam meditar mais seriamente no facto de, neste aspecto, tão mal representarem os desejos do povo que os elegeu. No facto de ser outro país a acarinhar um nosso valor nacional, mais que nós próprios.
Não sabem os riscos que correm. Na revolta generalizada do povo que está a sedimentar-se contra os partidos (embora nalguns casos seja injusta), pode eventualmente aparecer um demagogo, escudado nos valores nacionais, que arranje uma maioria de dois terços e que depois use as leis democráticas para virar tudo do avesso (arranje uma constituição que, por exemplo, lhe garanta o poder indefinida-mente...). `Os partidos que protegem os acumulantes da riqueza e estão acantonados nos votos dos indolentes e dos inúmeros benefi-ciados à custa do povo laborioso´ podem, nesse paradigma desvian-te, levar um arrepio que nem imaginam.
Um possível paradigma que acabe, até, com esta minha preciosa liberdade de dizer o que penso...