«[...] [U]ma maior disseminação de brasileirismos na escrita portuguesa (que já é antiga, note-se) irá surgir, não a partir de leituras ou das animações dobradas (“dubladas”, dir-se-á no Brasil), mas da oralidade disseminada maciçamente pelas telenovelas, após a fulgurante estreia de Gabriela na RTP, em 1977 [...].»
Um novo livro do linguista Fernando Venâncio vem ajudar ao debate entre o português de Portugal e o do Brasil.
Não há-de ter passado despercebido: no Festival RTP da Canção de 2022, entre as concorrentes estava uma canção escrita e cantada em português do Brasil. Não foi a primeira vez: já em 2021 sucedera o mesmo. Se no ano passado ouvíramos Tainá, jovem cantora e compositora nascida no Estado do Pará e radicada em Portugal há quatro anos, cantar Jasmim, canção de sua autoria, agora foi a vez de Blacci, uma luso-brasileira de 20 anos a residir em Portugal desde os seis, que apresentou no festival a canção Mar no fim, composta em parceria com outros autores. Foram ambas excluídas em semifinais, mas o que interessa para o que aqui nos traz é a admissão natural de outra variante do português no curso das nossas vidas e, no caso, num concurso de canções – para representar Portugal – onde tem havido, e bem, estimulantes sonoridades afro (Paulo Flores ou Aline Frazão já estiveram entre os compositores e este ano tivemos Pongo e Tristany).
Porém, como é sabido, as contendas entre o português de cá (o europeu) e o de lá (o do Brasil) têm-se acirrado a vários pretextos, na sua maioria contestáveis. O tema já foi tratado em crónica anterior (“O português, o ‘brasileiro’ e este absurdo que nos invade”), mas esta semana incide nele uma outra luz, não devido ao festival, mas a um livro, o mais recente do linguista Fernando Venâncio, lançado na passada segunda-feira em Lisboa, no El Corte Inglés: O Português à descoberta do Brasileiro. Autor da obra, a todos os títulos recomendável, Assim Nasceu Uma Língua (Guerra & Paz, 2019), Venâncio lança agora pela mesma editora esta outra, em fina análise do que tem sido a absorção de “brasileirismos” nos meios nacionais, daquilo que os motivou ou motiva e da oscilação entre duas “apreciações alucinadas” existentes entre nós: os que, eufóricos, exclamam «Olha como eles dizem! Tão queridos!» (estes são os cultores do «português com açúcar»); e os que dizem, «horrorizados»: «Eles nem português sabem falar!»
Partindo de cinco artigos publicados entre 1984 e 1994 no Jornal de Letras e um no Expresso-Revista em 2000, artigos esses que o livro reproduz na íntegra, Fernando Venâncio actualiza-os no resto do livro com novas investigações e cotejamentos, procurando enquadrar o curso das influências das expressões informais brasileiras na produção jornalística e literária portuguesa. Convém dizer que Fernando Venâncio, nascido em 1944, teve como muitos portugueses dessa mesma geração, ou da imediatamente posterior, contacto com publicações infantis ou juvenis escritas em português do Brasil. Depois viriam os filmes e séries de animação dobrados além-Atlântico (e muito ouviu a geração dos anos 80 a frase: «versão brasileira, Herbert Richers»). Por essa altura, o excelente humorista brasileiro Millôr Fernandes (1923-2012) tinha uma página no Diário Popular onde escrevia (entre 1964 e 1974) em lídimo português do Brasil, embora com a ortografia vigente em Portugal – o que terá levado um ministro de Salazar a comentar: «Este tem piada, pena que escreva tão mal o português.» Como se vê, já vem de longe o preconceito…
O mais curioso é que uma maior disseminação de brasileirismos na escrita portuguesa (que já é antiga, note-se) irá surgir, não a partir de leituras ou das animações dobradas («dubladas», dir-se-á no Brasil), mas da oralidade disseminada maciçamente pelas telenovelas, após a fulgurante estreia de Gabriela na RTP, em 1977. Venâncio escreve que «desde há décadas» os portugueses têm vindo «a fazer seus numerosos brasileirismos lexicais, fraseológicos e, em menor medida, sintácticos», sendo que alguns deles, garante, «vieram para ficar», Exemplos há muitos: «será que», «todo o mundo»(ou «todo mundo»), «não dá para», «fala-se que», «só que», «tudo o que é» ou «tudo quanto é», um novo uso para o advérbio «mesmo» («nevitável mesmo?», «poeta mesmo», etc.), «estar nessa», «estar numa», «acho que» (em lugar de «julgo que»), «entender» (em lugar de «perceber»), isto a par de elementos lexicais como «bagunça», «fofoca», «curtir» ou formas diminutivas como «historinha», «pouquinho», «vontadinha», etc. Exemplos concretos em jornais, revistas ou livros, dá-os Venâncio em boa quantidade. Não para assinalar nenhuma hecatombe a ameaçar o português europeu, mas para exemplificar uma osmose parcialmente passageira, em muitos casos ditada pelo mimetismo ou pela preguiça, mas de qualquer modo a assinalar uma inevitável convivência. Há uma fenda irreversível entre o português de Portugal e o do Brasil? Há. Mas, como se diz na contracapa do livro (obrigatório para quem encarar com seriedade este tema), «ninguém tem de ter medo desse afastamento e dessa liberdade».
Cf. Fernando Venâncio, linguista: «Ver um brasileirismo como uma invasão é coisa de gente insegura» + O Português à Descoberta do Brasileiro
Artigo do jornalista Nuno Pacheco, transcrito do jornal Público em 17 de março de 2022, escrito segundo a norma otográfica de 1945.