O conflito entre a Ucrânia e a Rússia, que, há mais de um mês, tem vindo a causar grande apreensão no mundo, leva também a que se preste uma especial atenção ao leste do velho continente, devido à curiosidade que suscitam as culturas e línguas que aí existem. Ora, do ponto de vista linguístico, a grande maioria das línguas faladas pelas comunidades do leste europeu pertencem à família das línguas eslavas (p. ex. o russo, o ucraniano, o polaco, o eslovaco, entre outras), sendo que um dos principais contrastes que existe entre estas línguas e o português diz respeito ao aspeto verbal.
A compreensão de uma frase não acarreta apenas a identificação dos elementos essenciais da predicação. Na frase, existem outras dimensões do valor semântico que também são processadas no momento da sua interpretação, como é o caso dos valores aspetuais. Do ponto de vista teórico, o aspeto consiste na forma como uma situação é perspetivada na sua estrutura temporal interna, a partir de uma referência temporal. De acordo com Luís Filipe Cunha na Gramática do Português1, a informação aspetual de uma frase é transmitida através de duas vias diferentes: uma de natureza lexical e outra de cariz gramatical.
O aspeto lexical reside no traço temporal interno básico de uma situação e decorre da interação de informações veiculadas pelo verbo, pelos seus complementos e, excecionalmente, por certas caraterísticas semânticas do sujeito. Este aspeto está relacionado com a classificação das situações em estados, eventos e atividades. Exemplos: «o João sabe francês» (estado); «o João espirrou» (evento); «o João escreveu um romance» (atividade). Já o aspeto gramatical consiste nos mecanismos que permitem modificar a configuração aspetual básica de uma situação e está dependente de um conjunto de elementos linguísticos, especificamente os verbos de operação aspetual, os adjuntos adverbiais temporais e os tempos gramaticais. Exemplos: «antigamente, o João sabia francês», «o João tem espirrado desde ontem», «o João ainda está a escrever um romance».
Quando se pretende estabelecer a diferença entre uma ocorrência parcial ou total de uma determinada situação, o aspeto gramatical compreende dois valores aspetuais fundamentais: aspeto perfetivo e aspeto imperfetivo. Fala-se de imperfetividade quando a situação é perspetivada no seu decurso, sem que as suas porções inicial e final se encontrem assinaladas: «estou a ler um livro». Já a perfetividade assinala uma situação concluída do ponto de vista exterior: «já li o livro».
Em português, por oposição ao que acontece nas línguas eslavas, o aspeto gramatical pode surgir na organização verbal do discurso associado à categoria tempo, isto é, como geralmente no verbo não existem recursos formais próprios para a sua expressão, os valores de aspeto são veiculados por morfemas que igualmente carreiam valores relativos à categoria tempo. Deste modo, em português, enquanto tempos como o presente e o pretérito imperfeito do indicativo veiculam imperfetividade, tempos como o pretérito perfeito e o mais-que-perfeito do indicativo estão associados à perfetividade. Isto significa que, no domínio do verbo, o português, como todas as outras línguas românicas, não dispõe de constituintes próprios para exprimir a perfetividade e imperfetividade, independentes de outros valores aspetuais veiculados por elementos externos ao verbo, como o complemento direto, sintagmas preposicionais e o sujeito.
Todavia, nas línguas eslavas, tal como assinala a investigadora Hlibowicka-Węglarz2, o aspeto «baseia-se no facto de cada verbo, em todas as suas formas temporais e modais, ser perfetivo, e/ou imperfetivo». Isto significa que quase todos os verbos destas línguas se organizam em duas formas: uma que veicula o valor de perfetividade e a outra um valor de imperfetividade, sendo que o verbo, dependendo da situação descrita pela frase, pode assumir a forma que manifesta um dos dois valores. Esta oposição aspetual é marcada no léxico através de processos derivacionais, ou por prefixação ou por sufixação. Por exemplo, em polaco, o verbo que significa «ler», quando apresenta o valor imperfetivo, assume a forma czytać, mas, para veicular um valor perfetivo, tem de se acrescentar à sua forma o prefixo prze, que origina então a forma przeczytać. Geralmente, usam-se os verbos na sua forma imperfetiva quando se pretende referir atividades contínuas («estou a ler») e na sua forma perfetiva para assinalar situações concluídas («já li»).
Em suma, ao passo que em português não se verifica uma correspondência direta entre formas linguísticas e propriedades aspetuais, uma vez que as indicações aspetuais são transmitidas por diferentes instrumentos linguísticos, nas línguas eslavas cada forma verbal tem marcada, através de mecanismos linguísticos próprios, a informação relativa ao valor aspetual, o que se coaduna com a redução de tempos verbais, na medida em que, na grande maioria destas línguas, existem apenas três tempos gramaticais: presente, passado e futuro.
1CUNHA, L. (2013), Aspeto. In Raposo et al. (2013). Gramática do Português. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 585-619.
2HLIBOWICKA-WĘGLARZ, Barbara (2015). As divergências e as convergências entre o sistema temporal polaco e português. (Disponível aqui)