«(...) O que fez Marcelo foi tão-só reproduzir através da voz uma transcrição em alfabeto latino de um texto talvez escrito originalmente em ucraniano, ou traduzido de português para ucraniano. (...)»
Muito se escreveu sobre o discurso que Marcelo terá proferido durante as comemorações no Dia da Independência da Ucrânia, a 24 de agosto. Percorrendo as notícias sobre o assunto, podemos ler que Marcelo «discursa / faz discurso em ucraniano», «lê em ucraniano», «fala em ucraniano». Será que o fez? De facto, quando chegou a sua vez de discursar, o Presidente optou por reproduzir oralmente, supostamente em ucraniano, um texto.
O que estava no documento? É pouco provável que fosse um texto escrito em ucraniano: esta língua escreve-se com alfabeto ucraniano, variação do alfabeto cirílico, que inclui 34 letras representando 40 fonemas (representações mentais, abstratas, dos sons); dessas 34 letras: 20 representam consoantes (algumas não existentes em português); 10, vogais (idem); duas, semivogais; um «sinal suave», que modera a entoação da consoante que o antecede; um apóstrofo, que suaviza algumas consoantes em contextos não esperados. Também é improvável que estivesse escrito em Alfabeto Fonético Internacional (AFI), um sistema Internacional de notação fonética composto por 157 carateres, que visa obter uma representação padronizada dos sons (concretos) das línguas do mundo, que permite a um connaisseur reproduzir oralmente uma transcrição fonética de qualquer língua, mas que é amplamente desconhecido do cidadão comum. O mais provável é que fosse um documento escrito em ucraniano romanizado, i.e., usando um sistema de transcrição/transliteração de ucraniano em carateres latinos. O problema é que o alfabeto cirílico foi criado precisamente por se assumir que o latino não representava eficazmente os sons das línguas eslavas.
O que fez Marcelo foi tão-só reproduzir através da voz uma transcrição em alfabeto latino de um texto talvez escrito originalmente em ucraniano, ou traduzido de português para ucraniano.
Marcelo «leu em ucraniano»? José Morais, no seu livro de 1992 sobre leitura, conta que John Milton, que ficara cego, ensinou as filhas a reproduzir oralmente textos clássicos, para, ouvindo a voz delas, poder usufruir do conteúdo deles, e chega à conclusão de que nem Milton lia, nem as filhas liam, em sentido estrito: elas reproduziam sinais gráficos através da voz, ele ouvia a voz delas e (re)construía a representação mental do conteúdo dos textos. Leitura implica compreensão e, mesmo ao ler em voz alta, compreendemos o que dizemos, o que torna possível usar a prosódia certa, i.e., ler com entoação. Marcelo não leu com entoação, não compreendeu o que disse e, portanto, não leu, nem discursou naquela língua.
Marcelo «falou em ucraniano»? Para falar uma língua é preciso sabê-la (dominar a sua gramática e vocabulário, construir enunciados, articular os sons dessa língua e atribuir significado ao contínuo sonoro de quem fala a língua). E Marcelo não sabe ucraniano, como ele próprio admitiu ao comentar o seu ato. Não falou, nem poderia falar.
Em suma, o que fez Marcelo foi tão-só reproduzir através da voz uma transcrição em alfabeto latino de um texto talvez escrito originalmente em ucraniano, ou traduzido de português para ucraniano. É legítimo questionar se, após passar por tantas traduções e transliterações, o texto faria ainda sentido, mas isso eu não sei. Quando Cândida Pinto, na Grande Entrevista, perguntou a Zelensky se ele tinha percebido o discurso, ele parece ter respondido que não...
O que está em causa não é o comportamento do Presidente, que terá certamente atingido algum(uns) dos propósitos que tinha em mente ao fazê-lo. Pergunto-me, sim, o que levará os media a, da perspetiva do discurso, serem tão pouco precisos no uso da linguagem ou, talvez, a pretenderem exacerbar as qualidades de Marcelo. A cada um, a sua resposta.
N. E. – Na imagem, recorte da foto que acompanha a notícia "Presidente da República no Dia da Independência da República", incluída no sítio oficial de informação da presidência da República Portuguesa com a data de 24 de agosto de 2023.
Crónica da autoria da professora universitária e linguista portuguesa Margarita Correia, transcrita, com a devida vénia, do Diário de Notícias de 4 de setembro de 2023.