DÚVIDAS

Próclise, ênclise e elipse do pronome se
associado a verbos coordenados

«É uma obra para se ler, ver e ouvir.» = «É uma obra para ser lida, vista e ouvida.»

As frases acima (sinónimas) parecem ser gramaticais, mesmo sem a repetição do «se» apassivante, na primeira, e de «para ser», na segunda.

Já nos exemplos abaixo, a primeira frase parece ficar agramatical sem o «se» (complemento direto) do verbo «tornar-se», enquanto a frase equivalente é claramente agramatical pela mesma razão.

«Foi um jogador que se afirmou e tornou um craque.» = «O jogador afirmou-se e tornou um craque.»

Em que casos pode evitar-se a repetição do clítico se numa sequência/enumeração verbal em próclise?

Obrigado.

Resposta

A omissão do clítico se pode acontecer em contextos de coordenação de orações que incluam os clíticos em próclise, ou seja, antes do verbo.

Antes de mais, é importante esclarecer que entre o primeiro grupo de frases e o segundo não se pode estabelecer um verdadeiro paralelismo porque estamos perante realidades gramaticais muito distintas.

A equivalência entre as frases (1) e (2) resulta do facto de ambas incluírem orações passivas (destacadas a negrito), resultantes ora da ação da partícula apassivante se, que constrói uma passiva sintética, ora da construção passiva mais tradicional

(1) «É uma obra para se ler, (se) ver e (se) ouvir

(2) «É uma obra para ser lida, (ser) vista e (ser) ouvida

Note-se ainda que o que se omite na frase (2) é o verbo auxiliar, que se assinala entre parênteses. Esta construção pode ter lugar em estruturas coordenadas.

No segundo grupo de frases não estamos perante frases passivas. A partícula se que aí se utiliza é parte integrante dos verbos pronominais afirmar-se e tornar-se.

No que diz respeito ao segundo conjunto de frases, aqui identificadas como (3) e (4), a diferença identificada está relacionada com o facto de o pronome clítico se aparecer em posição de próclise, ou seja, antes do verbo, ou em, posição de ênclise, ou seja, depois do verbo:

(3) «Foi um jogador que se afirmou e tornou um craque.»

(4) «O jogador afirmou-se e tornou-se um craque.»

A posição proclítica de se na frase (3) deve ao facto de esta incluir uma estrutura clivada («Foi… que»), que, em português, suscita a próclise. Em (4), a ênclise tem lugar porque estamos em presença de duas frases afirmativas coordenadas, que não constituem contexto de próclise.

Entre as duas frases, como refere o consulente, verifica-se uma diferença: em (3), é possível omitir o clítico que se associa ao verbo tornar, enquanto em (4) tal não é possível. Esta situação resulta de uma questão sintática que passamos a explicar: em orações coordenadas que incluam ambas um clítico é possível, em casos de próclise, omitir o segundo clítico. Todavia, nos casos de ênclise, tal não é possível porque daí resulta uma construção agramatical, como se observa em (5):

(5) «*O jogador afirmou-se e tornou um craque.»

Disponha sempre!

 

*Assinala a agramaticalidade da frase.

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