A história, que envolve o escritor português Augusto Abelaira (1926-2003) e a Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 194), de Celso Cunha e Lindley Cintra, é contada pelo linguista e filólogo Ivo Castro, no artigo "Abelaira, Pessoa e os gramáticos", publicado em 2003* e em “O linguista e a fixação da norma”, de 2002 (este último disponível aqui). Ambos os artigos foram mais tarde incluídos em A Estrada de Cintra - Estudos de Linguística Portuguesa (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2017, pp. 265-274 e 295-311). O essencial desse episódio também foi citado pelo Ciberdúvidas em duas ocasiões (aqui e aqui).
Não se sabe ao certo qual seria o tópico em dúvida, como o próprio Ivo Castro faz questão de frisar: «Abelaira não recorda qual a questão que protagonizou a anedota [...].» Mesmo assim, partindo das abonações da obra de Augusto Abelaira que Celso Cunha e Lindley Cintra Castro incluíram na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984), Castro (2017, pp. 269-272) identifica e lista uma série de questões «que são menos de correção que de estilo» (os números de página remetem para Cunha e Cintra, op. cit.):
– a explicitação do sujeito com formas como «eu próprio» e «eu mesmo»;
– a posposição do possessivo, como em «impressão minha»;
– o uso do futuro do pretérito simples (que se confunde com o condicional) com valor de possibilidade: «Tens a certeza de que, passadas as primeiras semanas, não lamentaria tamanho sacrifício?» (Cunha e Cintra, p. 450);
– o uso do futuro do pretérito composto para marcar dúvida quanto a eventos passados: «Sem ti, quem sabe?, teria sido uma grande cantora» (Cunha e Cintra, p. 453);
– a concordância com construção «um dos que...»: «És um dos raros homens que têm o mundo nas mãos.» (Cunha e Cintra, p. 498);
– a concordância com sujeito composto constituído por sinónimos (ver também aqui): «A conciliação, a harmonia entre uns e outros é possível» (Cunha e Cintra, p. 498);
– a concordância com um sujeito realizado por pronomes pessoais ligados pelas conjunções ou e nem: «Nem tu nem eu soubemos ser ser nós uma única vez» (Cunha e Cintra, p. 271).
Esta história tem o interesse de pôr em causa a importância que as abonações literárias tiveram e ainda têm como modelos de correção linguística, como o próprio Ivo Castro observa (2017, págs. 271/272):
«Ponto da situação: há uma série de ideias feitas quanto ao papel fundamental que a língua dos escritores deve desempenhar no estabelecimento da normativa gramatical. Mas verifica-se que regras gramaticais contraditórias podem ser encontradas na obra de dois escritores ou, ainda, na mesma obra do mesmo escritor. Não surpreende, portanto, que um escritor duvide de determinada regra de que é o mentor consagrado. Tudo isto aponta, afinal, para o risco de se construir totalmente uma gramática normativa sobre o testemunho de escritores (ou sobre uma classe única de fontes linguísticas).»
* Referências completas: “Abelaira, Pessoa e os Gramáticos”, Criação e Crítica. Homenagem de 8 poetas e 8 ensaístas a Giulia Lanciani, organização de Giorgio de Marchis, Lisboa, Caminho, 2003, p. 65-76; “O linguista e a fixação da norma”, Actas do XVIII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Porto, 2002, Lisboa, Associação Portuguesa de Linguística, 2003, p. 11-24.