O facto de a nossa língua ser uma entidade viva, em mudança constante, pode, por si só, justificar a diferença de posição entre a resposta que está no Ciberdúvidas, e que data de 1998, e a posição adoptada por Fernando Pessoa, que, sem negar que usa ambas, reconhece uma delas mais adequada do que a outra, na carta que cita e que foi escrita em 13 de Janeiro de 1935. Os sessenta anos que separam as duas posições poderão explicar a imposição gradual de uma expressão, em convívio com outra que a grande maioria dos falantes já considera, efecivamente, equivalente.
Quanto às razões que levaram Fernando Pessoa a tomar a posição que tomou, considerando a expressão «eu mesmo» mais adequada do que «eu próprio», poderei apenas dizer que Fernando Pessoa apresenta, em muitos dos seus textos, um português arcaizante, como acontece, por exemplo, na peça O Marinheiro. Aliás, se consultarmos a carta que o poeta escreve a Adolfo Casaes Monteiro, onde, creio, se procura respeitar a grafia original, veremos que existe uma grande diferença entre a forma como ele escrevia e a forma como hoje o fazemos. Refiro como exemplo as palavras “immediato” e “prompto”. Terá sido essa sua veia arcaizante a ditar-lhe a predilecção por «eu mesmo»? Através de uma pesquisa no Corpus do Português, é possível verificar que «eu mesmo» aparece em textos do século XIV, enquanto «eu próprio» aparece apenas em textos do século XVII. No entanto, seria preciso conhecer profundamente a difusão das duas expressões no tempo de Fernando Pessoa para se poder assumir, claramente, uma como arcaizante em relação à outra. Fica-nos o registo do poeta assinalando a distinção que, pelo menos ele, fazia.