Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber por que razão vários dicionários em linha (v.g. Priberam, InfopédiaDicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa) e até o próprio Ciberdúvidas registam apenas um único significado para a palavra estadual (definindo-a como se referindo a algo relativo a Estado-membro de uma federação, e, por isso, diferente de estatal) quando a mesma palavra encontra uso em legislação portuguesa.

Uma pesquisa feita a partir do motor de busca no Diário da República em linha mostra que o seu uso mais antigo, pelo menos segundo o sítio, remonta a 1960, se bem que ela continua a ser usada, podendo ser mencionado, por exemplo, o conceito de «derrama estadual».

Qual a origem de estadual relativamente a estatal, e serão então as duas palavras sinónimas?

Agradeço desde já.

 

Resposta:

Em português, o uso de estatal, com o significado de «relativo ao estado», não será anterior ao século XX e só terá tido difusão já na segunda metade do referido século.

O que alguns dicionários da primeira metade do século XX registam é estadual, variante não preferencial de estadal, «relativo ao Estado». Tais dicionários indicam também que estadual é um brasileirismo usado na aceção de «relativo a um estado federado»1.

Quanto a dicionários do século XIX, como as edições de 1813 e 1890 do dicionário de Morais, não há registo de nenhuma das três formas mencionadas na pergunta, ou seja, estadal, estadual ou estatal. O caso de «derrama estadual» é, portanto, muito interessante, mas a verdade é que não foi aqui possível obter mais informação sobre a razão de as entidades responsáveis pelas leis tributárias em Portugal escolherem e manterem o adjetivo estadual.

Um motivo plausível é o de, à data da criação desta tributação, não se empregar estatal, mas, sim, estadual como termo disponível para significar o mesmo que «do Estado» ou «relativa ao estado».

Resta, portanto, considerar que «derrama estadual» configura uma exceção ao uso mais corrente de estadual.

1 Cf. Cândido de Figueiredo, Novo Dicionário da Língua Portuguesa.

Pergunta:

 

Resposta:

Os pares referidos na consulta são, por um lado, os das consoantes sibilantes, em casos como os de cozer/coser e paço/passo, e, por outro, os das consoantes palatais, que hoje se reduzem a duas fricativas, mas no passado contrastavam com as consoantes africadas [tʃ] e [dʒ] (como os sons do italiano em palavras como cena e giorno, respetivamente).

Assim, respondendo às várias questões levantadas:

1. Até ao século XVI, com variações regionais, havia duas fricativas sonoras e duas fricativas surdas. No galego-português e ainda hoje, há um contraste entre o x de baixo e o ch de cacho, mas as opiniões dividem-se quanto a ter existido um contraste entre [dʒ] e [ʒ], pois é bem possível que [dʒ] fosse, afinal, a pronúncia mais antiga de /ʒ/.

2 e 3. O z de cozer era uma fricativa pré-dorsal sonora, e o s de coser, uma fricativa ápico-alveolar sonora; o ç de paço e o o c de cento e cinto eram uma fricativa pré-dorsal surda, enquanto o s de sinto e passo era uma fricativa apico-alveolar surda. Estes contrastes parecem manter-se entre muitos falantes de Trás-os-Montes e em lugares dos distritos de Viseu e Guarda. Note que as fricativas pré-dorsais terão sido numa fase mais arcaica do português, no período galego-português, consoantes africadas que soavam como "dz" (cozer = "codzer") e "ts" (paço = "patso"). Na norma padrão do português, que é sobretudo baseada em dialetos centro-meridion...

Pergunta:

Tenho uma curiosidade de saber de onde surgiu uma forma de falar, negar enfaticamente algo. Talvez seja um regionalismo da região onde moro aqui no Brasil. De qualquer forma, queria compartilhar.

Toda vez que alguém quer dizer que não deseja ou não aceita algo e quer expressar isso com bastante veemência, usa a expressão «é de». Por exemplo, se alguém oferece uma comida a uma pessoa X, esta pessoa, para dizer que não quer, bastaria simplesmente dizer «não, obrigado» ou simplesmente «não quero», mas diz assim: «Eu é de querer isso! Nem gosto!»

Resposta:

Agradece-se ao consulente a partilha de informação sobre este uso regional brasileiro (Ceará).

Observe-se que, nas fontes de que dispomos, não se encontra registo do uso em questão. No entanto, é bem provável que seja uma variante de uma construção expressiva, também conhecida em Portugal:

(1) Eu sou lá de querer isso!

A construção em (1) pode ter sujeito realizado por outros pronomes, desencadeado a concordância verbal adequada: «Tu és lá de»/«Ele/ela é lá de» + oração de infinitivo. Acrescente-se que (1) é construção do discurso informal, através da qual se exprime uma rejeição num tom assustado ou agressivo. Pode também servir para negar liminarmente o convite para agir de certa maneira ou alguma acusação: «P: Não queres fazer surf? R: Eu sou lá capaz disso!»; «A: Foste tu que escreveste a carta! B: Eu era lá capaz disso!».

Pergunta:

Está correta a utilização da palavra "linque", em substituição do termo link?

Obrigada.

 

Resposta:

Como adaptação gráfica e fonética do inglês link, a forma linque é um aportuguesamento correto, e quem o empregar não erra.

Contudo, linque pouco ou nada se usa, em contraste com o anglicismo link, que está em circulação. Se tivermos de empregar o estrangeirismo na sua grafia de origem, convém que o escrevamos em itálico ou lhe juntemos aspas.

Dito isto, convém lembrar que em português há uma alternativa a link: as palavras hiperligação ou simplesmente ligação, que estão corretíssimas e são relativamente correntes.

A propósito de <i>contacto</i>, «dezenas de milhares»<br> e <i>catenária</i>
Uma variante menos adequada, uma forma pouco correta e um erro sem discussão

O uso de contato em lugar de contacto, que é a forma corrente em Portugal,  o erro "dezenas de milhar" e a dispensável nasalidade do a da primeira sílaba de catenária ("cantenária") são imprecisões e erros que se recolhem nas notícias que circularam em Portugal nos primeiros dias de outubro de 2025. O comentário de Carlos Rocha.