Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Recentemente, foi-me apontado um erro de regência verbal numa estrutura sintática semelhante a "Duas bicicletas chocam uma na outra". A justificação é a de que o verbo "chocar", com o sentido de "embater" não admite a preposição "em" e que só a preposição "com" é aceitável neste contexto. A única versão possível seria, portanto, "Duas bicicletas chocam uma com a outra".

Consultei o dicionário Houaiss (Círculo de Leitores, 2015) e constatei que o verbo "chocar" pode ser regido de três preposições, nomeadamente "com", "contra" e "em", mas o dicionário em questão não foi aceite como uma fonte confiável por se tratar de um trabalho de um autor brasileiro. Sem querer discutir a relevância desta referência que eu pessoalmente considero primordial e muito relevante para as questões linguísticas de todas as variantes da língua, na minha maneira de ver, qualquer uma destas preposições estaria correta, e "chocam uma na outra" teria o mesmo valor que "chocam uma com a outra" ou até de "chocam uma contra a outra".

Poderão ajudar-me a perceber se estarei errada?

Obrigada.

Resposta:

No português de Portugal, é corrente empregar chocar, na aceção de «embater», com as preposições com e contra: «os comboios chocaram um com o outro/um contra o outro»; «Estas cores chocam uma com a outra» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).  

No entanto, mesmo na variedade de Portugal, não é impossível, a construção «chocar em», como se atesta em obras que descrevem usos do português europeu. Por exemplo, no Dicionário Sintático de Verbos Portugueses (1994): 

(1) Aquele aselha foi chocar contra uma /numa árvore.  

No Dicionário de Verbos Portugueses (Textos Editores, 2007), de J. Malaca Casteleiro, também se abona esta regência de chocar:  

(2) O camião chocou no portão.  

Quanto ao uso do Dicionário Houaiss, é sem dúvida uma obra de grande qualidade e confiável, centrado nos usos e na norma do Brasil, e regista também usos de Portugal e dos países africanos. Mesmo assim, quando se escreve na variedade europeia, convém cruzar a informação do referido dicionário com a de fontes elaboradas em Portugal, como é o caso das obras acima citadas.

Pergunta:

A palavra terno em português do Brasil remete para a noção de «fato».

Em português (de Portugal pelo menos) terno remete para um tipo de cartas, aquelas com o valor 3.

Em inglês, suit remete tanto para a noção de «fato», mas também para a própria palavra «naipe», estando, aparentemente relacionada tanto com o significado brasileiro como com o português.

Eu gostaria de entender melhor qual a viagem etimológica destes termos e se estão efetivamente relacionados ou se esta coincidência é mesmo só isso. Por acréscimo, perceber a etimologia de duques, quadras, quinas, até biscas seria interessante, bem como saber se também estes termos são usados no Brasil.

Muito obrigado.

Resposta:

A palavra terno é de facto um coletivo numeral, com o significado de «conjunto de três», que denota quer um vestuário masculino composto de três peças (calças, colete e casaco) quer uma «carta de jogar ou dado com três pintas (terno de copas; terno de espadas; terno de ouros; terno de paus)» (cf. Dicionário Houaissdicionário da Academia das Ciências).

O termo ingês suit, por coincidência, também se relaciona com o campo lexical do vestuário, porque denotava um grupo de seguidores (suit vem do francês suite, relacionado com o latim sequi, que veio a dar seguir em português), bem como a combinação de peças de roupa que esses seguidores usavam. Desta última noção, suit passou também a ser usado na aceção de «uniforme» e, por extensão semântica, «classe de cartas que exibem o mesmo sinal (e que, portanto, se combinam no naipe)».

Que terno e suit se relacionem ambos com roupa é, portanto, mera coincidência.

Quanto a naipe é palavra de origem catalã (naip) que foi transmitida pelo castelhano (naipe) ao português (naipe também). O termo é de etimologia obscura, mas tem-se proposto a sua relação com o francês naïf, ou seja, «tolo, parvo» (Diccionari Etimològic Complementar, de Joan Coromines).

Quanto aos outros vocábulos mencionados na consulta, registamos o que se diz no Dicionário Houaiss:

duques: «orig.contrv.; para vários autores, o voc. teria a mesma etim. de duque, com divg. de sentido; para outros, o étimo do voc. é impreciso mas teria ligação direta com o num. lat. duo,ae,o 'dois, duas'»

quadras: «lat. quadra,ae 'quadrado, forma ...

Pergunta:

Depois de ter pesquisado sobre a origem dos termos náuticos bombordo e estibordo, entendo que são, com grande certeza, de origem germânica, mais propriamente do neerlandês, e que viajaram até ao português através do francês, provavelmente no séc. XV/XVI. Mas se a expansão portuguesa teve início ainda no séc. XIV, o que pedia que me ajudassem a descobrir é quais seriam os termos equivalentes que os portugueses usavam nessa época precisamente para bombordo e estibordo.

Resposta:

Nas fontes a que temos acesso não temos informação sobre os termos que se usavam antes do século XV para exprimir as noções denotadas por bombordo e estibordo. Aliás, é curioso constatar que noutras línguas ibéricas, como o espanhol (castelhano) e catalão, também os termos correspondentes têm a mesma origem nórdica e parecem estar só documentados a parti do século XV.

Sabendo que as navegações portuguesas também se entendem num contexto ibérico, seria de esperar que as fontes relativas ao espanhol e ao catalão pudessem facultar alguma informação sobre as palavras que precederam os termos espanhóis babor/estribor e os catalães babord/estribord. Na verdade não é isso, que acontece, e até é possível verificar, por exemplo, que no Diccionari Etimològic i Complementari de la Llengua Catalana, de Joan Coromines, revela-se que o registo de bombordo em português têm atestação mais antiga, embora estibordo figure mais tarde na documentação. Não será, portanto, impossível que bombordo e talvez estibordo tenham uso precoce em português, o que se compreende atendendo aos contactos comerciais frequentes com regiões costeiras mais a norte, designadamente a Flandres.

Dito isto, convém acrescentar que não em português mas em galego regista-se as expressões «banda de couso» (ou couse) como o mesmo que bombordo e «banda de arca», como sinónimo de estibordo. Note-se, porém, que se trata de usos regionais galegos, e não temos informação de que «banda de cousa/arca» fossem os termos usados no período galego-português da língua.

Não conseguimos, portanto, dar informação mais concreta so...

Pergunta:

Devemos escrever «escrito a quatro mãos» ou «escrito a duas mãos»?

Resposta:

Recomendamos «escrito a quatro mãos», embora a expressão, fora do domínio musical, possa ser equívoca.

O dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, regista em subentrada «a quatro mãos», expressão apenas referente ao campo da música. Contudo, a Infopédia não indica o domínio concreto em que a expressão se usa e define «a quatro mãos» como «feito a par; por duas pessoas», dando assim margem para considerar «escrito a quatro mãos» a expressão correta.

No contexto da lexicografia brasileira, o Dicionário Houaiss também permite legitimar «escrito a quatro mãos», porque a define de forma não exclusivamente musical:

«a quatro mãos: 1 feito por duas pessoas. Ex.: um artigo, um livro a quatro mãos. 2 para ser tocado por duas pessoas no mesmo piano. Ex.: um arranjo a quatro mãos».

Finalmente, em Português – Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas (Edições João Sá da Costa, 1988), de António Nogueira Santos, regista-se «a quatro mãos», com a seguinte definição: «diz-se do que é feito por duas pessoas».

Pergunta:

No Brasil, há a expressão «no ponto».

Será que pode ser usada em termos mais gerais ou será que é preciso dizer «no ponto certo» na frase a seguir: «...crocante por fora, macia por dentro e no ponto certo»?

Obrigado.

Resposta:

Basta dizer «no ponto», embora também possa dizer e escrever «no ponto certo».

Note-se que a expressão «(estar) no ponto» também se usa em Portugal e noutros países de língua portuguesa e entende-se como «(estar) na forma ideal» (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Sendo assim, não se incorre em nenhum erro se se optar pela seguinte formulação: «a massa está crocante por fora, macia por dentro e no ponto».