«(...) Dentro pouco tempo, uma folha de papel e uma lapiseira serão e ninguém saberá o que fazer com eles dois objetos obsoletos. (...)»
O título do jornal inglês era o seguinte, e dá-me muito jeito para estabelecer o tom a esta crónica: «Homem não consegue roubar banco porque funcionários foram incapazes de perceber a letra com que escreveu nota a anunciar o assalto.» Exato. É um problema que não teve em conta. Está a perder-se a capacidade de escrever à mão. E não só de escrever como de entender a própria escrita cursiva (manual). Sem grandes alarmismos, podemos dizer que é uma questão de tempo para que as novas gerações deixem mesmo de saber fazer uso de um instrumento de escrita para estruturar um pensamento, ou de escrever uma nota com um pedido de auxílio (ou de assalto), ou tenham sequer criado aquilo que chamamos de «assinatura», um obsoleto rabisco apenas repetível pelo próprio e que serve de prova indesmentível de que aquela pessoa e não outra do universo colocara sua honra no documento.
Nos EUA, há muitos estados que estão a desistir de ensinar muito mais do que o básico da escrita cursiva às crianças, sendo que passam dos ecrãs com bonecada para a escrita em letras já em formato digital, dado não terem tempo a perder com o ensino da escrita manual.
Assumem que podem arriscar criar já uma geração que eventualmente será incapaz de usar um pedaço de papel e uma lapiseira. Estive a ler uns fóruns de jovens que se insurgem por terem de aprender a escrever à mão, algo que não usam para nada nem lhes serve para coisa alguma. Em Portugal, do pouco que sei, há um paradoxo. Os miúdos passam o tempo a exprimir-se de forma digital, mas nos testes e exames é-lhes exigido formular ideias, pensamentos e teorias em escrita manual. E aqui temos uma questão. A forma como se pensa quando se escreve num computador ou em escrita cursiva não é completamente idêntica. Caprichos do cérebro.
Recentemente, concluiu-se através de ressonâncias magnéticas — e ao arrepio do «ar dos tempos» — que há efetivamente uma «letra feminina» e uma «letra masculina», dado que ativam áreas diferentes do cérebro. Lá se foi a teoria de que as diferenças de género na caligrafia eram uma questão cultural ligada à forma como ensinavam a escrita aos meninos e às meninas.
O que o computador não dá
Sendo dos que viveram metade da vida de forma analógica e outra metade de forma digital, consigo por vezes fazer uma ponte. Ou pensar que sim. (Pode ser um erro: um centauro não tem necessariamente as melhores qualidades de um homem e de um cavalo.) Efetivamente, há certo tipo de sínteses mentais que só consigo plasmar no papel. Se for uma questão de discorrer de forma argumentativa, o digital serve-me. Mas se tiver de estar a ver a big picture, não há nada mais eficaz do que o papel e uma caneta. Há um processo de formação do pensamento em que a conexão psicomotora entre o cérebro e a mão e o traço e o tamanho, forma, intensidade da caligrafia são emanações da luta interior. E isso não consigo que o computador me dê. Só consigo pensar nessas coisas com papel e caneta. Talvez seja eu (não é por acaso que há quem diga que não percebe nada do que digo).
Mas alertam os especialistas que manuscritos como as cartas, nomeadamente as cartas de amor, não eram só conteúdo, mas uma dança de nuances de escrita. Não vou aqui discorrer como a caligrafia, o papel usado, as expressões eram formas de manifestar distinção de classe e estatuto, mas tal como na missiva de amor (louco, perdido, descoberto, adormecido, morto, não correspondido), as formas como as letras vão correndo rápidas ou lentas, como a caneta se vai afundando no papel, saída das margens, tremendo aqui e ali, são reflexo de uma meteorologia interior que obviamente os emojis do digital não dão. A escrita à mão era uma linguagem por si. Mas o problema maior de retirar a capacidade de ler manuscritos a todas as gerações futuras é que ficarão incapazes de aceder ao passado. Ah, sim, claro, a inteligência artificial fará isso por eles.
A assinatura também está a acabar. Criar a sua própria assinatura era um drama identitário que se apresentava na adolescência. Na primeira vez em que fui fazer o Bilhete de Identidade, o local para assinar era muito estreito e alto, e aquilo não saiu como eu queria e passei a vida toda a repetir esse momento falhado. Tive sempre o drama de não conseguir imitar de forma convincente a minha própria assinatura nos cheques, e mesmo estando no meu banco, na minha agência, à frente de funcionários que até me conheciam, colocava-se uma dúvida quanto à minha existência por causa da assinatura que me tinha visto fazer. «Tente lá fazer outra vez porque senão ‘eles’ não aceitam.»
Terei mudado? Estarei outro? Que diz a minha letra? Convivemos anos com a pseudociência da grafologia, que alegadamente conseguia ler determinados traços da personalidade da pessoa através da letra. Tudo treta. Fiz o meu ensino primário durante a euforia revolucionária no Alentejo. A minha caligrafia reflete a anarquia desleixada desses tempos — impercetível e destrutiva —, o que teve custos quando os professores universitários não conseguiam entender a minha letra: a aprendida nos tempos do PREC versus a dos que tinham estudado na bolha dos colégios lisboetas.
Mas defendo que saber escrever uma frase num papel com um lápis não se deva tornar algo tão obsoleto como ver um homem a enviar um telegrama. Se retirarem às crianças a capacidade de ler um texto manuscrito e de um dia escreverem — quem sabe — uma carta de amor daquelas desesperadas, de dor de corno, irão tirar-lhes a possibilidade de vivenciar parte do mundo que, escrevendo, nos fez como somos. Muitas vezes esborratados, riscados por cima, impercetíveis: nós.
Cf. Tudo com IA: a nova busca do Google muda a forma como usamos a internet + Língua portuguesa entra na era da IA + Nicolelis explica por que não precisamos temer a Inteligência Artificial + Porque escrever à mão ainda é importante na era digital
Crónica do jornalista português Luís Pedro Nunes, transcrita, com a devida vénia, do semanário Expresso do dia 23 de julho de 2023.