«O Brasil [...] representa 90% dos utilizadores de português na internet e os usos linguísticos desses falantes refletem a grande diversidade social do nosso país.»
[U]ma notícia bizarra num jornal da cidade de Manaus [em 06/02/2022] chamou a minha atenção. Uma mulher matou a amiga que a corrigiu ao pronunciar uma frase errada em português1. A indignação da interpelada foi tanta que ela decidiu vingar-se: matou por ofensa à língua portuguesa. Casos desse tipo são extremos, mas mostram muito bem como as tensões sobre os usos considerados adequados ou corretos da língua estão presentes em nossa vida social, em variadas esferas de comunicação e em diferentes classes econômicas.
Com o português entre as seis primeiras línguas de maior presença na internet, é natural que haja uma grande diversidade de expressões da língua, em diferentes graus de formalidade e representando variadas normas de uso. No entanto, nem sempre essas normas são representativas dos usos considerados cultos. Mas o mundo digital não seria o campo onde os falantes abusam da criatividade e da liberdade em busca da comunicação mais significativa? Para os utilizadores das redes sociais em português, por exemplo, uma boa comunicação é medida pelos likes e comentários, e para interagir vale tudo, não é mesmo? Mas nesse mundo sem fronteiras que é a Internet não faltam os policiamentos linguísticos e as discriminações contra aqueles(as) que ousam ferir o ideal do português padrão, correto, incorruptível. Para os que rompem com esse ideal não faltam adjetivos como “burros”, “ignorantes”, “assassinos da língua”, “analfabetos”, entre muitas expressões que circulam nas redes. Mas que português castiço seria esse?
O Brasil, por exemplo, representa 90% dos utilizadores de português na internet e os usos linguísticos desses falantes refletem a grande diversidade social do nosso país. Afinal, comunicar-se na internet seria apenas para aquela parcela privilegiada da população que teve acesso a uma boa escolarização básica e ao nível superior? Ao contrário disso, desde as pessoas das classes sociais menos privilegiadas àquelas que detêm grande parte das riquezas do país, todos têm pelo menos um celular conectado à internet, a partir do qual se fazem presentes no mundo digital, com o português que sabem usar. Por isso, aquelas pessoas que se dedicam a criticar os modos como as pessoas se comunicam em português na Internet, salientando o que consideram “erros” e “ofensas” à língua, na verdade discriminam a grande parcela da população que é pobre e que teve pouco acesso à educação formal de qualidade. Por outro lado, a patrulha linguística também tem funcionado como arma política, que serve para desqualificar pessoas de uma certa projeção social pelos usos inadequados do português. Nesses casos, até os mais ferrenhos defensores da liberdade linguística e da democratização do uso da língua juntam-se ao coro dos detratores. Afinal, cobrar de um juiz que use a língua portuguesa de modo adequado é bem diferente de cobrar de uma pessoa que sequer completou os primeiros anos de escolarização, não acham?
O mundo digital é um espaço de múltiplas dimensões, onde cabem todos os usos do português, pois ali se celebra a diversidade, mesmo que alguns não a reconheçam.
1 Disponível em Acrítica.com (acesso em 09/02/2022).
Ouvir aqui:
[AUDIO: Edleise Mendes – O português sem discriminação no mundo digital ]
Crónica incluída no programa de rádio Páginas de Português (Antena 2), em 13 de fevereiro de 2022.