«Atingiu-se um valor histórico: a nossa atenção é hoje inferior à do peixe-dourado. Tal se deve às tecnologias digitais [...].»
Quarenta e duas plataformas digitais, eis o que os professores têm de dominar para, nos diferentes estabelecimentos de ensino, serem considerados "professores de excelência". Sumários eletrónicos, portarias, horários, reuniões com colegas e com direções, com pais e com alunos, tudo passa pelo ecrã. Temos o GIAE, o SIGAE/ IGA; ele há o site da DGE, o Extranet e o IAVE; ele é o MEGA (manuais escolares) e o portal dos Recursos Humanos; temos o DGEST/Recorra e o DocGest; não faltam o SIESTE (edifícios escolares) e o SISE (Segurança Social); e para assuntos relacionados com o acompanhamento psicológico dos alunos, vamos ao Psicólogos POCH e para matricular os estudantes vamos ao Portal das Matrículas; para compras públicas o VORTAL e, se ainda se lembram de bibliotecas, temos o SIRBE... Enfim, a lista é longa, o tempo para ensinar, de facto, é pouco.
Não sei se os diretores de escola, os pais, ou muitos professores leram o livro de Michel Desmurget, A Fábrica de Cretinos Digitais (o título do meu artigo glosa o livro do neurocientista francês), mas, num país como o nosso onde quem governa só segue modas e obedece a obscuras razões de interesse nacional para, como é o caso do digital na Educação, obrigar alunos, professores e pais a serem os técnicos de informática que nunca escolheram ser; num país assim, convém jogar forte e chamar os bois pelos nomes: a ditadura digital existe e a reboque dela estamos a perder gerações inteiras de estudantes e de docentes que seriam melhores estudantes e melhores docentes se tivessem tempo para fazer do livro o meio essencial das aprendizagens. Queixamo-nos de se ler pouco em Portugal.
Dizemos que não há uma «cidadania ativa». Constatamos que se lê pouco ou nada neste pobre país, que é um país pobre. Como haver consciência política, cidadania ativa, gente culta e, por isso, mais exigente consigo e com os outros, com os governantes e empresários, se tudo, hoje, está de cabeça caída por sobre os ecrãs e não são poucos os escuteiros que pugnam pelo computador em vez do livro? Isso é especialmente verdade no campo do ensino. Mas quem defende o computador, o manual digital, a parafernália dos ecrãs, leu Michel Desmurget? Não? Aqui ficam, então, alguns excertos que deveriam fazer soar os alarmes nas escolas e nas universidades, nas famílias e nas empresas.
Escreve o ensaísta francês, Prémio Femina de Ensaio em 2020: «Aos 2 anos as crianças dos países ocidentais consagram todos os dias quase 3 horas ao ecrã. Entre os 8 e os 12 anos, esse tempo aumenta para cerca de 4h e 45 min; entre os 13 e os 18, a exposição é, em média, de 6 h e 45 min. Em termos anuais são cerca de 1000 horas para um aluno do 1.º ciclo; e 1700 para um aluno do 2.º ciclo. Para alunos do 3.º ciclo e Secundário, falamos de 2400 horas anuais, o equivalente a um ano e meio de trabalho a tempo inteiro.» Não é suficiente para alterar o plano de transformar as escolas em centros de informática? Não é suficientemente grave? Então há mais: Desmurget confirma (com recurso a gráficos, mapas neuronais, estatísticas) os males que o digital inflige a toda uma nova geração de adictos (drogados) dos ecrãs: os smartphones, os tablets, a televisão, os computadores contribuem para a obesidade, o aumento de doenças cardiovasculares; potencia a agressividade (experimentem proibir o uso do telemóvel a crianças e adolescentes... a reação será sintomática do grau de adição), perturba o regime do sono, promove, ao nível do comportamento, a depressão e a ansiedade, e, cognitivamente, afeta a linguagem (que empobrece), a concentração (6 minutos é o tempo de leitura dos estudantes, hoje), a memorização (o ChatGPT virá cavar mais fundo ainda o buraco negro da memória onde todas as aprendizagens - as poucas dignas desse nome - se afundam e perdem).
NÃO, O DIGITAL NÃO É A SOLUÇÃO! A SOLUÇÃO É O REGRESSO AO LIVRO E À CULTURA. Pois bem, para que tal aconteça, quem ensina precisa de ter três condições fundamentais (as condições do investigador), sem as quais a Escola e a Universidade não existem: dinheiro, tempo e habitação. Dinheiro para comprar cultura livresca; tempo para fruir essa cultura, casas dignas onde ter «um quarto só seu». Escreveu Rousseau: «A questão no ensino não é ganhar tempo, mas perdê-lo.» Para quando, em Portugal, medidas que tornem este país mais livre e menos provincianamente fascinado pelas «luzes impuras» do suposto progresso tecnológico que, se existe, nos põe, a todos, e contrariamente às promessas de uma vida melhor, de gatas?
O neurocientista escreveu este libelo contra o digital após observar, criteriosamente, as consequências nefastas dos ecrãs em crianças e adolescentes de diversos países. Contra a alienação de gerações inteiras de jovens (e dos menos jovens, também), Desmurget insurge-se, apelando a que não sigamos o Santo Graal que é hoje o smartphone, a arma dos «sugadores de cérebro», «o derradeiro cavalo de Troia da nossa descerebração». Escreve Michel Desmurget: «Quanto mais "inteligentes" se tornam as aplicações, mais substituem o nosso pensamento e mais nos permitem tornarmo-nos idiotas.» Para quem ainda insista em defender o digital no ensino, vale esta nota: a própria Microsoft explica que a capacidade de atenção dos seres humanos tem vindo a regredir e a deteriorar-se nos últimos 15 anos. Atingiu-se um valor histórico: a nossa atenção é hoje inferior à do peixe-dourado. Tal se deve às tecnologias digitais, comprova-o, neste livro urgente, o neurocientista.
Artigo de opinião publicado no Diário de Notícias em 16 de abril de 2023.