De entre tudo o que se aprende com os alunos, encontra-se, sem dúvida, a aquisição de novo vocabulário, embora o deles seja tremendamente reduzido, aliás parece que palavras se desvanecem dele num dia a dia. Como exemplo, posso referir quando informei uma turma da antecipação de uma aula que gerou uma certa confusão. Só depois reparei que o significado do verbo antecipar era desconhecido. Na mesma linha, queixava-se-me uma amiga, de uma turma, creio que de terceiro ano da universidade, onde havia quem desconhecesse o que era um colóquio, nem o significado de palavras como homogéneo. A principal causa é sobejamente conhecida: a falta de leitura. Aliás, a propósito do declínio das capacidades de leitura e da sua importância, foi publicado, a 11 de outubro, no Público e outros jornais europeus, o “Manifesto de Liubliana sobre a importância das competências superiores de leitura”, divulgado também aqui no Ciberdúvidas, onde se pode ler que: «A leitura de nível superior é a nossa ferramenta mais poderosa para desenvolver o pensamento crítico e analítico. Exercita a metacognição e a paciência cognitiva, expande as nossas capacidades conceptuais, treina a empatia cognitiva e a capacidade de criar perspectiva, competências sociais indispensáveis para sermos cidadãos informados numa sociedade democrática». E esta citação acaba por sintetizar de forma magistral a sua importância.
Reduzidos ao tik tok e ao instagram
No meu caso, após mais de uma década a trabalhar com estudantes universitários chineses, sinto, estranhamente, que a língua portuguesa também se converteu numa espécie de língua estrangeira para os portugueses. Por vezes, o vocabulário que tenho de explicar é tão elementar que se torna difícil. Aliás, numa outra semana, até houve um aluno que me disse que eu falava com «coisas que pareciam tiradas dos livros». As «coisas» ou «cenas» corresponderão a palavras, vocábulo que também se vai apagando daquilo que antes se podia chamar de «bagagem vocabular», agora reduzida a um nécessaire, uma daquelas malinhas muito pequeninas, onde colocamos o mais básico quando viajamos. Talvez apenas umas poucas dezenas de palavras bastem para assegurar as necessidades básicas – entre as quais a própria comunicação fica de fora, pois está tudo no tik tok, no instagram e em mais uns quantos sítios, cujos nomes nem sei. Apesar de tudo isso, as emoções pedem algo que as exprima. Assim, é neste contexto que surge o que a seguir contarei.
Em certa aula, comecei a perceber que os alunos estavam todos muito aziados uns com os outros («já me aziaste»). Ora, eu conhecia a azia desde muito cedo (que a minha bisavó tentava combater com pastilhas Rennie, mas com ainda mais frequência com miolos de amêndoa pelados), mas aquele aziamento tão feroz era-me desconhecido. Pedi que me explicassem melhor o seu significado, o que acabaram por fazer, dizendo que era chatear-se, desatinar (afinal ainda há sinónimos). Depois, terminada a aula, fui à Infopédia da Porto Editora, onde se confirmava: «Aziar, verbo intransitivo» – em sentido popular, «sentir ira ou enfado, em resultado da frustração de vontade ou desejo».
Conclui que em tempos de escassez vocabular, de azia colectiva, psicológica, quando os livros jazem nas estantes encobertos pelo pó do esquecimento, é no domínio popular que se pode encontrar uma palavra para exprimir uma emoção básica.
É o caso deste «aziar», testemunha de um outro tempo, proveniente das feridas geradas nos contratempos do quotidiano, dos desencontros no relacionamento com os outros. Contudo, também essa dimensão popular se enraíza numa memória perpetuada não apenas pela oralidade, mas também pela escrita, correndo, por isso, também o risco de ficar de fora do tal nécessaire, a confluir para um vazio, onde todas as azias sufoquem no doloroso silêncio da incomunicabilidade.
Cf. Jovens portugueses leem cada vez menos e hábitos das famílias influenciam + O que fazer quando meu filho não se concentra na leitura?