«Qual é o verdadeiro grau dessa diferença [na colocação pronominal] entre as normas?»
Todos sabemos que, na modalidade FALADA da língua portuguesa, há fortes diferenças entre a colocação pronominal brasileira, que privilegia a próclise («Te amo«), e a colocação pronominal lusitana, que privilegia a ênclise («Amo-te»).
Isso se dá porque, historicamente, os brasileiros herdaram e conservaram uma colocação pronominal dos portugueses do século XVI, que usavam frequentemente a próclise – séculos depois, a norma lusitana passou a usar mais a ênclise do que a próclise, mas não a norma brasileira.
No entanto, o objetivo desta postagem se centra na modalidade ESCRITA formal, que consubstancia a língua nos diferentes territórios. E, nesse contexto, qual é o verdadeiro grau dessa diferença entre as normas?
Para o cotejo entre a norma-padrão brasileira e a norma-padrão lusitana, foram usadas duas gramáticas: do lado brasileiro, A Gramática para Concursos Públicos" (2023)¹, de Fernando Pestana; e, do lado português, a Gramática do Português" (2013), de Eduardo Raposo et al. Buscou-se contabilizar cada possibilidade de colocação².
Na norma brasileira e na norma lusitana, foram encontrados não menos do que:
12 casos de próclise;
5 casos de ênclise
2 casos de mesóclise;
8 casos facultativos (ver obs. do caso 1); e
6 casos com locuções verbais³.
Abaixo, elenquei apenas os casos de divergência⁴ entre as duas normas-padrão, OK?
Vejamos:
1- Após pronome indefinido seguido de oração adjetiva restritiva com verbo no subjuntivo:
Todos os convidados que, porventura, tenham chegado tarde se perderam na argumentação do discurso; Todos os convidados que, porventura, tenham chegado tarde perderam-se na argumentação do discurso.
Todos os convidados que, porventura, tenham chegado tarde perderam-se na argumentação do discurso.
Obs.: É bem amplo o nível de particularidade da colocação com os pronomes indefinidos (chamados de quantificadores na norma europeia, que também inclui em seu conjunto outras classes gramaticais da norma tradicional brasileira), o que pode alterar o número definido acima dos casos facultativos.
2- Após pronome demonstrativo ou pessoal:
Isso lhe interessou; Isso interessou-lhe. // Elas me deram a mão; Elas deram-me a mão.
Isso interessou-lhe. // Elas deram-me a mão.
3- Após conjunções coordenativas (não atrativas):
Eles acordaram e se reuniram na sala; Eles acordaram e reuniram-se na sala. // Chegou bem perto do quadro, mas se decepcionou; Chegou bem perto do quadro, mas decepcionou-se.
Eles acordaram e reuniram-se na sala. // Chegou bem perto do quadro, mas decepcionou-se.
Obs.: Se houver uma palavra atrativa na primeira oração, no PE a próclise é de lei na segunda oração após a conjunção coordenativa: «Raramente acordam e se levantam de imediato». No PB, a colocação é facultativa.
4- Após sujeito explícito (sem palavra atrativa):
Carlos a chamou; Carlos chamou-a. // Os dois se amam; Os dois amam-se. // Casar com a Juliana me deixou feliz; Casar com a Juliana deixou-me feliz.
Carlos chamou-a. // Os dois amam-se. // Casar com a Juliana deixou-me feliz.
5- Com infinitivo não flexionado precedido da preposição a:
Eles chegaram a me ajudar; Eles chegaram a ajudar-me.
Eles chegaram a ajudar-me.
6- Com infinitivo flexionado precedido de qualquer preposição, exceto a:
Foram escolhidos por nos auxiliarem; Foram escolhidos por auxiliarem-nos.
Foram escolhidos por nos auxiliarem.
Obs.: Há conflito de lição gramatical entre gramáticos brasileiros sobre a possibilidade de ênclise neste caso.
7- Após intercalação (sem ou com palavra atrativa antes):
O Pedro, dono da barbearia, se aposentou; O Pedro, dono da barbearia, aposentou-se. // Não sei quem, em vista dessa situação, se aposentou; Não sei quem, em vista dessa situação, aposentou-se;
O Pedro, dono da barbearia, aposentou-se. // Não sei quem, em vista dessa situação, se aposentou.
8- Locuções verbais (com infinitivo, gerúndio, particípio):
Ele nos vai ensinar; Ele vai-nos ensinar; Ele vai nos ensinar; Ele vai ensinar-nos. // Ele não nos vai ensinar; Ele não vai nos ensinar; Ele não vai ensinar-nos.
Ele vai-nos ensinar; Ele vai ensinar-nos. // Ele não nos vai ensinar; Ele não vai ensinar-nos.
Ele nos estava ensinando; Ele estava-nos ensinando; Ele estava nos ensinando; Ele estava ensinando-nos. // Ele não nos estava ensinando; Ele não estava nos ensinando; Ele não estava ensinando-nos.
Ele ia-nos ensinando os assuntos; Ele ia ensinando-nos os assuntos. // Ele não nos ia ensinando os assuntos.
Ele nos havia ensinado; Ele havia-nos ensinado; Ele havia nos ensinado. // Ele não nos havia ensinado; Ele não havia nos ensinado.
Ele havia-nos ensinado. // Ele não nos havia ensinado.
Assim, fica constatado que a norma culta ESCRITA tem mais semelhanças do que diferenças.
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¹ Escolhi a minha gramática porque, entre os compêndios normativos brasileiros, é o que reúne o maior número de casos registrados nas demais gramáticas normativas tradicionais, sobretudo as da segunda metade do século XX até então.
² Ressalva importante: eventuais correções podem ser feitas a posteriori. Dito isso, eis uma informação suplementar: na nomenclatura gramatical lusitana, usa-se interpolação para designar o que, na nomenclatura gramatical brasileira, se chama apossínclise, que diz respeito a uma forma de colocação arcaica no PB e bastante rara no PE em que o pronome oblíquo átono fica posicionado distante do verbo, antes duma palavra atrativa ou entre duas, como se vê em «Isso lhe não diz respeito», em «Ela nos já havia informado a notícia» ou em «Acho que lhe não deram o presente».
³ As locuções verbais são formadas por um verbo auxiliar + um verbo principal/pleno (no infinitivo, no gerúndio ou no particípio), como se vê em «vou ajudar», «estou ajudando», «tenho ajudado». No entanto, existem construções que se assemelham a locuções verbais, mas, na verdade, são formadas por um verbo não auxiliar seguido de um verbo no infinitivo, como em «quero ajudar» – alguns gramáticos contestam a auxiliaridade de querer e outros verbos, como tentar, pretender, costumar, seguir, etc. Esta observação é importante, pois a colocação pronominal nessas «falsas locuções verbais» segue o mesmo padrão das verdadeiras locuções verbais. Ademais, é preciso esclarecer que os casos de locuções verbais foram contados assim: I) as com verbo principal/pleno no infinitivo, no gerúndio e no particípio, sem palavra atrativa delas; II) idem, mas com palavra atrativa antes delas. Para mais detalhes, ver a 8ª distinção na lista de distinções de colocação entre as duas normas!
⁴ Note que as divergências não são absolutas, e sim parciais, o que torna as normas mais próximas, apesar do maior número de formas variantes na norma-padrão do português brasileiro, em virtude do lastro da tradição lusitana de colocação pronominal herdada pela cultura literária brasileira.
Apontamento incluído no mural do autor no Facebook em 14 de abril de 2025.