«(...) /Já a escolha do indivíduo (ou, mais amplamente, da coletividade que compartilha entre si semelhantes escolhas linguísticas) é o ESTILO (...])»
Imagine que você esteja diante de um guarda-roupas enorme, com milhares de peças de diferentes tecidos e cores, adequadas aos mais variados contextos sociais — meias, sapatos, sandálias, tênis, chinelos, calças, bermudas, cuecas, calcinhas, biquínis, shorts, cintos, coletes, suspensórios, vestidos, camisas, macacões, sobretudos, casacos, paletós, gravatas, lenços, chapéus, etc.
Agora imagine que você tenha de escolher, por exemplo, uma roupa para passear à noite, no shopping; ou para ir à praia; ou para ir a um casamento; ou para ir a um evento musical; ou para turistar...
Você acha que o ESTILO usado por você – ou seja, a combinação das peças e utensílios – será o mesmo de todas as pessoas nesses lugares?
Certamente não, ainda que todas as peças usadas por elas façam parte daquele mesmo gigantesco acervo.
– Pestana, aonde você quer chegar? Do que você está falando?
Compare as três frases abaixo:
1. Ontem à tarde, o miúdo foi àquela pastelaria comprar um bolo de aniversário, mas esqueceu-se do dinheiro em casa, porque estava a resolver alguns problemas de manhã e distraiu-se completamente.
2. Ontem à tarde, o menino foi naquela padaria comprar um bolo de aniversário, mas esqueceu do dinheiro em casa, porque estava resolvendo alguns problemas de manhã e se distraiu completamente.
3. Temon detar a, nimeno o oif quenala dariapa copramr mu loob ed verrioverani, sam es ceuquees od nhiieord me acsa, quoper tavesa soldoenre gansul blemaspro ed nmaah e es trisuiad teplecommen.
Exceto a frase 3, que não nos diz nada, note que todos os vocábulos usados nas frases 1 e 2 são facilmente reconhecidos tanto pelos brasileiros como pelos portugueses – afinal, todos eles fazem parte do mesmo gigantesco guarda-roupas chamado LÍNGUA PORTUGUESA, que pode ser consultada nas gramáticas e nos dicionários para eventuais esclarecimentos.
Você (brasileiro ou português) sabe que, nas frases 1 e 2, os fonemas das palavras são da língua portuguesa, que os morfemas das palavras são da língua portuguesa, que o arranjo sintático das palavras é da língua portuguesa, que o sentido veiculado pela frase é da língua portuguesa.
Mas, porém, contudo, todavia, entretanto, no entanto, não obstante... o que distingue ambas as frases é (I) a escolha das palavras que compõem o nosso vasto vocabulário e (II) a combinação dessas mesmas palavras numa sequência levemente diversa.
Português europeu
miúdo
foi àquela
pastelaria
esqueceu-se do dinheiro
estava a resolver
e distraiu-se
Português do Brasil
menino
foi naquela
padaria
esqueceu do dinheiro
estava resolvendo
e se distraiu
Ao passo que a frase 1 reflete mais o ESTILO da fala do português europeu, a frase 2 reflete mais o ESTILO da fala do português brasileiro.
O imenso guarda-roupas é a LÍNGUA, é (tecnicamente) o SISTEMA LINGUÍSTICO, isto é, o conjunto de todas as possibilidades gramaticais do idioma, a soma de toda a sua heterogeneidade.
Já a escolha do indivíduo (ou, mais amplamente, da coletividade que compartilha entre si semelhantes escolhas linguísticas) é o ESTILO – neste contexto, trata-se da NORMA* nacional: o conjunto de fatos linguísticos em comum produzidos e compartilhados pelos indivíduos duma nação.
Resumo da ópera?
A LÍNGUA é o guarda-roupas: um sistema vasto, flexível, pleno de possibilidades. Já o ESTILO é a escolha feita dentro desse sistema – escolha que varia conforme o lugar, o tempo, a intenção, a identidade de quem fala. Quando entendemos isso, deixamos de ver variações legítimas como "erro" e passamos a enxergá-las como expressão viva da criatividade e da cultura dos povos que partilham o português, que é de Portugal, do Brasil, de Angola, de Moçambique, de Cabo Verde e de tantos outros lugares onde ele floresce com novas cores e sons.
*Ressalva necessária: o conceito de norma empregado neste texto é mais genérico, nada tendo a ver com o conceito de «norma culta», a qual se manifesta na escrita e na fala dos indivíduos mais cultos da sociedade, com elevado domínio e refinamento no uso da língua. Inclusive, sugiro aqui a leitura do livro A língua do Brasil, de Gladstone Chaves de Melo, que explica brilhantemente essa questão de língua e estilo no capítulo 7.
Apontamento do gramático brasileiro Fernando Pestana publicado no mural do autor no Facebook em 1 de maio de 2025 e aqui transcrito com a devida vénia.