Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Que forma é preferível:

«Depois de passar nos exames, viajou» ou «Depois de ter passado nos exames, viajou»?

Muitíssimo obrigado!

Resposta:

Ambas as frases são corretas e têm sentidos bem próximos, mudando-se apenas o foco e a força temporal devido à escolha de «passar» e de «ter passado».

Na primeira frase («Depois de passar nos exames, viajou»), a forma simples do infinitivo (passar) focaliza a aprovação nos exames, mais do que a relação semântica de anterioridade em relação a viajar, que obviamente também existe.

Na segunda frase («Depois de ter passado nos exames, viajou»), a forma composta do infinitivo (ter passado) enfatiza mais evidentemente a noção temporal de anterioridade, indicando que o ato de passar se completou antes da viagem.

Assim, se a intenção for apontar para a uma relação de temporalidade mais clara entre as duas orações, é preferível a segunda construção, ainda que o sentido de ambas seja bem semelhante.

Sempre às ordens!

Pergunta:

Nesta estrofe de Os Lusíadas a aliteração da letra d e t são usadas para indicar o tique-taque de um relógio?

Já neste tempo o lúcido Planeta,
Que as horas vai do dia distinguindo,
Chegava à desejada e lenta meta,
A luz celeste às gentes encobrindo,
E da casa marítima secreta
Lhe estava o Deus Noturno a porta abrindo,
Quando as infidas gentes se chegaram
As naus, que pouco havia que ancoraram

Resposta:

Em voz baixa ou mentalmente, faça o exercício de pronunciar /t/ e /d/ cadenciadamente, como um tique-taque de um relógio antigo, e verá que o consulente tem razão.
Os quatro primeiros versos dessa estrofe do Canto II d'Os Lusíadas repicam simbolicamente, com a ajuda dos fonemas oclusivos ápico-dentais surdos e sonoros /t/ e /d/, o som de um relógio, pois o próprio contexto da estrofe sugere essa analogia altamente expressiva da transição entre o dia e a noite:
 
Já nesTe Tempo o lúciDo PlaneTa, 
Que as horas vai do Dia DisTinguinDo, 
Chegava à DesejaDa e lenTa meTa, 
A luz celesTe às genTes encobrinDo
 
A sonoridade curta e seca de /t/ e /d/ evocam um movimento rítmico, contínuo de um relógio, que, implacável, acentua a ideia de um processo regular e inevitável, em que o tempo marca de modo preciso a passagem entre a luz e a escuridão.
 
Por isso, o recurso estilístico da aliteração empregada nos quatro primeiros versos amplifica o poder sonoro que têm os fonemas para simbolizar o passar do tempo, criando-se uma atmosfera de transição do dia para a noite.
 
Sempre às ordens!
 
Importante: os relógios de bolso foram inventados por Peter Henlein no início dos anos 1500; provavelmente os grandes navegadores portugueses já usassem tal relógio; no entanto, não podemos garantir com precisão se esse relógio portátil fazia exatamente o som de tique-taque tão característico do relógio inventado em 1656 por Chistiaan Huygens.

Pergunta:

No período «É a tarde que chega», ocorre o emprego da expressão expletiva «É... que», caracterizando um período simples, ou trata-se de um período composto formado por duas orações distintas («É a tarde» e «que chega»)?

Além disso, na análise sintática do período, o sujeito da forma verbal chega é «tarde» ou «que»?

Obrigado!

Resposta:

O recurso estilístico «É... que...» é classificado* como expressão expletiva, pois realça, enfatiza, focaliza o sujeito da frase «a tarde» – note que o sintagma «a tarde» não está preposicionado, logo não pode ser uma locução adverbial de tempo. Suprimindo-se tal expressão expletiva, comprova-se isso claramente: «A tarde chega.»

Dentro da análise gramatical praticada no Brasil, quando há uma expressão expletiva na frase, o verbo ser que a forma não é tomado como constituinte de oração. Além disso, o vocábulo que, elemento desta construção, não exerce nenhuma função sintática.

Assim, há apenas uma (1) oração na frase "É a tarde que chega".

Sempre às ordens!

*Visto ser brasileiro o consulente, a nomenclatura usada na resposta reflete a metalinguagem empregada na tradição gramatical do Brasil.

Pergunta:

Por que o plural de sol é acentuado (sóis), e a 2.ª pessoa do plural («vós sois») do verbo ser não é acentuada?

Entendo que as duas formas são monossílabas terminadas em ditongo aberto.

Obrigado.

Resposta:

Segundo as regras de acentuação gráfica abordadas na tradição escolar de ensino de gramática, o acento gráfico em sóis se deve ao fato de haver um ditongo aberto, ou seja, o timbre da vogal o é aberto, de modo que se grafa sóis.

No entanto, a segunda pessoa do plural do presente do indicativo do verbo ser – a saber: sois – não tem o timbre aberto, e sim fechado; afinal, não se diz «Vós "sóis" o sal da terra», e sim «Vós "sôis" o sal da terra». Assim sendo, nessa flexão verbal («vós sois»), não se aplica a regra de acentuação gráfica dos ditongos abertos.

Em suma, eis aqui dois exemplos de cada grafia: «Estava tão quente o dia que parecia haver dois sóis no céu» e «Vós sois pessoas admiráveis».
 
Sempre às ordens!

Pergunta:

O dicionário diz que bobo(a) e idiota significam a mesma coisa.

Porém, se alguém chama o próprio par romântico de bobo(a), é elogio, enquanto que se alguém chama o próprio par romântico de idiota, é ofensa!

Qual a razão disso no caso?

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Há uma área nos estudos linguísticos chamada pragmática – é o ramo da linguística que estuda como o contexto comunicativo influencia o significado das palavras e das frases: há uma preocupação não só com o que as palavras significam isoladamente, mas também com como elas são usadas em situações reais de comunicação.

Seguindo a linha de pensamento e de dúvida do consulente, podemos dizer que as palavras bobo e idiota podem ser sinônimas em certos contextos, claro; mas, em outros, elas têm significados diferentes dependendo de como são ditas, de quem as diz e da situação em que se diz.

1) «Você é um bobo!»

Essa frase, a depender do tom e do contexto, pode ser dita de forma carinhosa ou até brincalhona. Em outras palavras, se uma pessoa faz algo tolo de maneira inocente, o outro pode usar bobo com uma conotação mais leve, quase afetuosa.

2) «Você é um idiota!»

Já essa frase é, em geral, considerada mais pesada porque tem uma impressão negativa mais forte. Pode ser usada em situações em que alguém fez algo realmente estúpido ou prejudicial, de maneira que o termo idiota indica uma crítica mais severa.

Em virtude disso, no campo da pragmática, a diferença entre bobo e idiota vai além do dicionário, pois se baseia no contexto e na intenção de quem fala. O significado de cada palavra depende da situação comunicativa real e das relações entre as pessoas envolvidas. Esse é o ponto.

Sempre às ordens!