Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na frase «Ele estuda tão pouco», o termo «tão pouco» é uma locução adverbial de intensidade? Ou dois advérbios de intensidade?

Obrigado.

Resposta:

De acordo com a tradição gramatical brasileira*, são dois advérbios de intensidade, em que pouco indica o grau de intensidade na ação de estudar e tão (termo acessório na frase) amplifica esse grau de intensidade.

Veja a diferença de sentido, quanto à intensidade:

– Ele estuda pouco.

– Ele estuda tão pouco.

O grau de intensidade entre a primeira e a segunda frase é evidente. Na primeira, pouco modifica o sentido do verbo estudar. Já na segunda, o advérbio de intensidade tão acentua o sentido de pouco, constituindo o grau superlativo absoluto analítico deste advérbio.

Sempre às ordens!

 
* Por ser brasileiro o consulente, usou-se na resposta a nomenclatura gramatical brasileira.

Pergunta:

Na frase «Enamorou-se, jovem, de Gabriela», jovem seria um predicativo do sujeito oculto?

Eu poderia considerar que há uma oração elíptica (quando era jovem) para justificar que jovem é um predicativo?

Muito obrigado!

Resposta:

Segundo a tradição gramatical brasileira¹, o adjetivo exerce duas funções sintáticas: adjunto adnominal ou predicativo.

Quando funciona como adjunto adnominal, vem ao lado de um nome, o que não é o caso.

Por exclusão, o adjetivo jovem só pode funcionar como predicativo do sujeito, pois se refere ao sujeito da frase.

Há alguma polêmica² entre certos estudiosos sobre a possibilidade de interpretar o segmento entre vírgulas como uma oração subordinada adverbial temporal oculta («Enamorou-se, [quando era] jovem, de Gabriela»); ainda outros aventaram a possibilidade de ser um aposto com núcleo implícito («Enamorou-se, [rapaz] jovem, de Gabriela»). Mas, no Brasil, ambas as visões não tiveram aderência dentro do ensino tradicional de gramática.

Em suma, o termo sintático jovem é um predicativo do sujeito, compondo o predicado verbo-nominal da frase.

Sempre às ordens!

¹ Por ser brasileiro o consulente, usou-se na resposta a nomenclatura gramatical brasileira.

² Sugerimos a ampliação do estudo sobre esse tema na gramática de Evanildo Bechara (seja na parte de anexo predicativo, seja na parte de aposto). Ademais, vale a pena investigar o assunto no livro Da necessidade de uma gramática-padrão da língua portuguesa, de Amini Boainain Hauy.

Variantes popular e culta no português europeu
Brasileirismos ou arcaísmos lusitanos?

«Muito do que se entende por "brasileirismo" nada mais é do que arcaísmo lusitano ou formas dialetais lusitanas cicatrizadas na fala popular ou interiorana do português brasileiro — ainda que com alguma ligeira diferença cá e acolá» – afirma o gramático brasileiro Fernando Pestana neste apontamento publicado no seu mural de Facebook (17/04/2025).

 

Pergunta:

Gostaria de saber como a seguinte oração intercalada é classificada sintaticamente e a classificação da palavra como nesse contexto:

«Os verbos de elocução – como murmurar, perguntar, responder, exclamar, entre muitos outros – são usados para indicar aspectos das falas das personagens.»

Obrigada!

Resposta:

No seu Manual de análise léxica e sintáticaJosé Oiticica identifica um grupo de palavras que não se enquadram nas 10 classes gramaticais tradicionais* (substantivo, adjetivo, artigo, pronome, numeral, verbo, advérbio, preposição, conjunção, interjeição). A esse conjunto ele chama de «palavras (e locuções) denotativas», as quais têm diferentes matizes semânticos e discursivos. Na página 34 desse manual, é encontrada a resposta à pergunta da consulente, em que como equivale discursivamente a «por exemplo».

Diz o autor: «EXPLICATIVAS: como, a saber, por exemplo, em frases como: eram cinco, a saber: Pedro, Paulo...; são palavras simples, como: pé, mão, etc.; os coleópteros, por exemplo, tem metamorfoses completas; ...». Em nota, na mesma página, diz o autor que esses conectivos não podem ser tomados como conjunções, pois não exercem esse papel, de modo que «introduzem apenas uma enumeração, como os dois pontos».

Assim, na frase «Os verbos de elocução – como (= por exemplo) murmurar, perguntar, responder, exclamar, entre muitos outros – são usados para indicar aspectos das falas das personagens», o trecho entre travessões é um aposto explicativo introduzido por uma palavra denotativa de explicação (como), a qual introduz uma enumeração explicativa.

Note que não se pode tomar por oração o segmento «como murmurar, perguntar, responder, exclamar, entre outros», porquanto os verbos no infinitivo que compõem o trecho estão em sua forma nominal, com função substantiva, empregados genericamente, de maneira que não c...

Pergunta:

«Ela tem olhos brilhantes feitos o Rei Sol.»

Dúvida: na frase apresentada está correto o uso de feitos relacionando olhos brilhantes e o sol?

Obrigada.

Resposta:

Certos vocábulos da língua portuguesa sofrem um processo chamado gramaticalização, que diz respeito à transformação de uma palavra potencialmente passível de sofrer flexões, como um verbo, numa palavra gramatical, ou seja, numa palavra que perde sua potência flexional. Existem muitos exemplos de gramaticalização na língua portuguesa.

No caso em apreço, a forma verbal de particípio (feito; ex.: «O prato foi feito com cuidado»; «Ela havia feito os exercícios»; «Feitas as ressalvas, todos concordaram com ela») se transforma numa conjunção comparativa equivalente a como ou «assim como», portanto se torna invariável, isto é, não passível de flexão, o que torna errado o uso de feitos.

Assim, a forma correta é esta:

– Ela tem olhos brilhantes feito o Rei Sol.

= Ela tem olhos brilhantes como o Rei Sol.

Ainda vale dizer que a oração «feito/como o Rei Sol» tem, como é costumeiro em construções comparativas, um verbo subentendido:

– Ela tem olhos brilhantes feito/como o Rei Sol tem.

Em suma, nesse contexto frasal, o feito deixou de ser um verbo no particípio para assumir o estado de conjunção comparativa. No português brasileiro, esse emprego é muito comum – tão comum a ponto de o gramático normativo tradicional Domingos Paschoal Cegalla registrá-lo em sua Novíssima Gramática da Língua Portuguesa", no rol de conjunções comparativas.

Sempre às ordens!