Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber se é apropriado o uso do subjuntivo na frase abaixo, isto é, quanto à utilização da palavra desenvolvessem:

«Havia diferentes formas de intervenção, e, na maioria dos casos, os presidentes não agiam ao arrepio da lei, mesmo quando desenvolvessem uma atuação nitidamente partidária, que era a que se manifestava nas nomeações e demissões de autoridades locais importantes, como delegados e subdelegados, nas proximidades dos pleitos.»

Grato!

Resposta:

O conceito de correlação verbal trata da harmonia de sentido existente entre os tempos e modos verbais correlacionados numa frase.

Na frase trazida pelo consulente, é preciso notar que todos os verbos estão no modo indicativo, no tempo pretérito imperfeito, portanto dentro do campo da certeza, da factualidade:

«Havia diferentes formas de intervenção, e, na maioria dos casos, os presidentes não agiam ao arrepio da lei, mesmo quando desenvolvessem uma atuação nitidamente partidária, que era a que se manifestava nas nomeações e demissões de autoridades locais importantes, como delegados e subdelegados, nas proximidades dos pleitos.»

Assim, nada justifica o uso do subjuntivo, com valor hipotético, pois geraria uma desconformidade modo-temporal com os demais verbos, de maneira que, no lugar de "desenvolvessem", se deveria usar desenvolviam.

<i>Facto</i> ou <i>fato</i>? <i>Registo</i> ou <i>registro</i>?
Um breve diálogo (real) sobre a língua

«Cada norma linguística (seja no português, seja no espanhol, seja no inglês, seja no francês) tem as suas peculiaridades, pelo que, quanto mais estudamos a língua, menos sobranceiros e mais compreensivos ficamos» – sublinha o gramático Fernando Pestana a respeito do vezo de certos falantes de português de rejeitarem formas corretas e gramaticais, mas diversas da variedade materna. Texto que o autor publicou na sua página de Facebook em 2 de abril de 2025 e que se partilha com a devida vénia.

Pergunta:

Existe a frase «Eu falto terminar a tarefa»?

Existe «eu falto à escola...», «Eu falto à reunião...», «Falta um aluno na sala...»

Na gramática, a estrutura «Eu falto» + outro verbo no infinitivo é válida na língua portuguesa normativa?

Qual seria a classe gramatical/função sintática do verbo faltar e terminar nessa frase?

Resposta:

No português brasileiro*, é bastante comum o que se chama de reanálise sintática: ocorre quando os falantes começam a interpretar uma estrutura gramatical de forma diferente da original, levando a mudanças na língua ao longo do tempo.

No caso trazido pelo consulente (em que a construção normativa padrão «Falta-me terminar a tarefa» se torna «Eu falto terminar a tarefa»), a reanálise envolve a tendência do português brasileiro de priorizar o sujeito (em vez do objeto), de priorizar o agente (em vez da ação em si) e de priorizar o tópico (em vez do foco), transformando o verbo transitivo indireto («faltar-me» = «faltar a mim») em verbo auxiliar (faltar + infinitivo)¹. Isso significa que a estrutura da frase sofre um ajuste para destacar quem realiza a ação (sujeito/agente), como o tema central da conversa (tópico), por isso o objeto (me) passa a sujeito (eu). Dentro da gramática tradicional, esse fenômeno está relacionado ao que os antigos gramáticos chamavam "afetividade", porque em geral (portanto, nem sempre) isso ocorre com verbos que expressam algum sentimento ou estado de espírito do enunciador (do "eu"). Veja outros exemplos:

– Custa-me crer em você > Eu custo a crer em você.

– Admira-me que ela não tenha retornado > Eu me admiro que ela não tenha retornado.

– Alegrou-me estar com vocês hoje > Eu me alegrei por estar com vocês hoje.

Como consequência dessa reanálise sintática, a ordem das palavras se torna mais fixa, consolidando a sequência Sujeito-Verbo-Complemento (SVC).

Agora, importante: segundo a norma-padrão da língua portuguesa, algumas dessas construções de reanálise sintática ainda não estão estáveis nem consolidadas na norma culta, de modo que, em situações comunicativas mais formais (sobretudo na escrita), recomenda-se «Falta-me terminar a tarefa», «Ainda me falta terminar a tarefa», «Já não me falta terminar a tarefa» etc., ...

Pergunta:

Para se referir um jornal com nome em inglês, como The Times, deve-se referir como “o Times”, “o The Times”, ou apenas “The Times”?

Exemplo:

1. De acordo com o Times

2. De acordo com o The Times

2. De acordo com The Times

Resposta:

Não se encontrou em nenhuma gramática ou dicionário de dúvidas do português a questão solicitada pelo consulente. Por isso, recorreu-se ao Corpus do Português para verificar os usos (que determinam a norma).

Não só em Portugal como no Brasil, o artigo definido se fez presente milhares de vezes antes de títulos de jornais iniciados por The, como «o The Times», «o The Washington Post», «o The Guardian» e outros, na construção «De acordo com o The...» (A ausência do artigo definido não chega a casa de uma centena.)

Assim, conclui-se que, em linguagem jornalística, o padrão normativo abona o uso do artigo definido: «De acordo com o The Times...».

Sempre às ordens!

Pergunta:

Eu e alguns colegas entramos numa boa discussão gramatical devido à frase: «Circe faz você tão tentadora quanto à mais bonita sobremesa.»

Entendemos que o acento indicativo está equivocado (estamos corretos?); mas apresentamos uma divergência: a frase está equivocada, pois apresenta apenas um artigo ou uma preposição?

Não consigo ver a frase citada apresentado a preposição; porque, em estruturas semelhantes, a "preposição" não aparece; porém fiquei na dúvida.

Obs.: Eu entendo que «quanto a» significando «em relação a» tem preposição; mas a estrutura da frase citada parece-me muito com as estruturas dos graus dos adjetivos que não usam a preposição.

Desde já, agradeço-lhes a enorme atenção.

Resposta:

Tratando-se de adjetivos, a estrutura da frase é de grau comparativo de igualdade*, constituída de tão + adjetivo + quanto/como. Esse quanto é uma conjunção subordinativa comparativa.

É muito frequente que, nas orações subordinadas adverbiais comparativas, o verbo ou predicado da segunda oração venha implícito (elíptico). Veja um exemplo:

– A Maria é tão encantadora quanto a Sara.

Essa frase equivale a «A Maria é tão encantadora quanto a Sara é encantadora».

Para evitar a repetição viciosa, valemo-nos da elipse de «é encantadora».

O mesmo ocorre com a frase trazida pelo consulente:

– Circe faz você tão tentadora quanto a mais bonita sobremesa (é tentadora).

Portanto, não há crase, porque quanto é uma conjunção comparativa, e não um vocábulo que constitui a locução prepositiva «quanto a». Dessa maneira, o a que precede «mais bonita sobremesa» é apenas um artigo definido, não havendo possibilidade de crase.

Sempre às ordens!

* Por ser brasileiro o consulente, foi empregada a nomenclatura gramatical brasileira.