« (...) Eu, beirão, com avós que falavam um quase dialeto próprio guarnecido de insígnias sociais e avenças culturais, louvei, na minha adolescência, a graça de ter um sotaque neutro. A ruralidade da família não se agarrou à forma como eu me expressava. Mas a resistência não sobreviveu. (...)»
Aquilo que nós somos está exposto na forma como nos expressamos. Vocábulos, pronúncia, entoações, sintaxe revelam a nossa classe social, nascedouro, rotas migratórias, idade, raça, perfil psicológico. A língua é um armazém de experiências. Mesmo quando decidimos trair-nos com bens materiais ou redes sociais para iludir uma audiência, a expressão linguística é um espelho frio à frente de um corpo desamparado.
A falta de mobilidade social e a perpetuação das elites portuguesas foram firmando, no século XX, um padrão de qualidade de expressão linguística. Dominar esse padrão é condição necessária à pertença em estruturas de poder. A maioria dos apresentadores de TV e dos políticos falam dentro do mesmo caixilho. Muitos deles passaram por aulas de dicção que, em teoria, serviriam para ajudá-los a falarem de forma clara, concisa e sugestiva, mas acabaram por desvitalizar a sua expressão linguística. Apagam-se pronúncias regionais, nivelam-se vocabulários, corrigem-se entoações. É como um dançarino contemporâneo voltar ao plié no Lago dos Cisnes. Nas TV de Lisboa, são poucos os jornalistas e apresentadores que carregam o seu sotaque portuense ou alentejano. Deputados açorianos parecem nascidos em Alvalade.
Eu, beirão, com avós que falavam um quase dialeto próprio guarnecido de insígnias sociais e avenças culturais, louvei, na minha adolescência, a graça de ter um sotaque neutro. A ruralidade da família não se agarrou à forma como eu me expressava. Mas a resistência não sobreviveu. Nas duas décadas seguintes, vividas em muitos países e em muitos idiomas, deixaram intermináveis indícios na minha língua portuguesa. Como os carimbos de um passaporte, os vocábulos idiomáticos, a peleja de sotaques, os vocativos inesperados, o ritmo carnavalesco - tudo revelava quem eu era.
Ao voltar para Portugal, recusei, nos primeiros meses, a maioria dos convites para falar em público. Acho que foi por vergonha. Na primeira apresentação, para o CEO e conselho de administração de um dos principais grupos económicos no país, comecei por pedir desculpa pela mistura de sotaques, citando Miguel Torga. Em Portugal, a pluralidade linguística no interior duma mesma língua não é vista como um indicador de fertilidade social e de abundância de vivências, mas como um mecanismo de catalogação gregária e identificação de elites. A progressão social de um indivíduo depende da sua capacidade de standardizar a forma como se expressa. Precisamos de branquear a língua, desinfetá-la de pessoalidade e raspá-la de experiências, para sentirmos que pertencemos a determinadas altitudes. E, nesses lugares cimeiros, todos temos os mesmos galardões espetados na fala.
Do sermo urbanus ao sermo vulgaris
Esta forma de discriminação fundamentada na língua tem um nome – glotofobia. Em França é punida por lei. No Reino Unido, uma política interna da BBC de 2018 (BBC Diversity Commissioning Code of Practice), impõe a diversidade linguística dando espaço tanto a um nativo de Liverpool que fala scouse quanto a um de Mayfair que fala Queen"s English. No Brasil, onde abunda a pluralidade de expressões linguísticas, as elites, impulsionadas por movimentos sociais, começam a mostrar sinais de tolerância perante a falta de parametrização da língua. Do mercado financeiro já me chegam emails genéricos que começam por Carxs Senhorxs, para poderem dialogar com todas as identidades de género - homens, mulheres e não-binários.
Em Portugal, precisamos de exprimir-nos com menos espartilhos e descobrir que o valor da nossa língua deriva da sua vitalidade e pluralidade e não da preservação de um modelo tradicionalista de comunicação. Durante o império romano, a língua latina dividia-se entre o sermo urbanus (falado pela aristocracia) e sermo vulgaris (falado pelo povo e pelos soldados). O primeiro desapareceu no séc. VI, enquanto o segundo deu origem a inúmeras línguas, como o português. Impor uma diferenciação linguística ao outro e apontar as dissemelhanças como ato de distanciamento social pode gerar uma segurança imediata, mas acaba por diminuir o valor do artifício que usamos para nos valorizar, a língua.
Ontem ao almoço embirrei com a minha esposa, brasileira de São Paulo, que uma broa de milho só podia ser chamada "broa". Batizar um produto regional, típico da minha Beira, espécie única da galáxia de Viriato, como "pão de milho" seria uma infâmia e uma transgressão. Mas a minha mulher é editora e tem uma relação muito livre com a língua, para ela não há certo ou errado, apenas comunicável e incomunicável. Depois de me ter explicado a etimologia do termo e a história centenária e apátrida da receita, percebi que ela tinha razão (como quase sempre). Uma broa não tem que ser só chamada de broa. A língua portuguesa não tem que ser igual para todos.