« (...) Não é a língua que gera estes problemas denominativos, mas as convenções sociais a ela associadas. Quando se aceitar sem reservas o direito das mulheres a fazer parte do mundo do trabalho, os problemas deixarão de existir. (...) »
No último quartel do século XX, a sociedade portuguesa abriu atividades, cargos e profissões às mulheres, o que à época suscitou acesa discussão sobre a forma feminina dos nomes desses cargos, atividades e profissões. Lembro a este respeito de quando Ruth Garcês assumiu o cargo de juiz em 1977 e de quando Maria de Lourdes Pintassilgo assumiu a chefia do V Governo Constitucional, em 1979, tornando-se primeira-ministra. Lembro ainda a admissão de mulheres nas Forças Armadas, na década de 1990, e a dificuldade em estabelecer formas femininas para funções e patentes militares.
Poderia pensar-se que a discussão surgiu apenas em relação a atividades de alto nível; não esqueço, porém, uma aluna do curso noturno (1987-88), contratada como carteira pelos CTT, e a estranheza o facto gerava entre os colegas, maioritariamente homens. Poderia pensar-se que o problema é linguístico, ligado à morfologia dos nomes, mas a maioria deles é comum de dois (e.g. estudante, dentista, oficial) ou variável quanto ao género, sem qualquer constrangimento formal (e.g. professora, enfermeira, astrónoma).
São, sobretudo, aspetos sociais e culturais os que geram constrangimentos à adoção das formas femininas de alguns nomes de atividades, cargos e profissões. Algumas dessas formas são homónimas de nomes de domínios ou áreas do saber, normalmente femininos (e.g. mecânica, música, técnica); outros denominam objetos concretos (e.g. bagageira, carteira), embora ser secretária não cause engulhos, talvez por elas serem tradicionalmente mulheres. Embaixatriz (proveniente da forma italiana ambasciatrice) é a esposa do embaixador, tendo-se especificado lexicalmente a mulher que exerce o cargo, a embaixadora. As formas femininas de patentes e funções militares, além de reservadas às esposas dos respetivos (e.g. sargenta, oficiala, majora, coronela), fazem parte do registo coloquial e têm conotações muito pejorativas; por isso, na comunicação formal, mantêm-se as formas masculinas para as mulheres militares.
Não é a língua que gera estes problemas denominativos, mas as convenções sociais a ela associadas. Quando se aceitar sem reservas o direito das mulheres a fazer parte do mundo do trabalho, os problemas deixarão de existir.
Hoje [8 de março de 2021] é Dia Internacional da Mulher. Se há anos considerava a comemoração irrelevante, por não me sentir discriminada no mundo do trabalho (e a discriminação no seio familiar me ter sido apresentada como inevitável), a verdade é que nos últimos anos tenho assistido, em muitas instituições públicas, com relevo para as universidades, a um recrudescimento da discriminação das mulheres no acesso a cargos e categorias mais altos. Também sinto, por interposta pessoa, como nas empresas privadas as mulheres, especialmente em idade fértil, são preteridas em processos de recrutamento e progressão, e veem os seus contratos não renovados ou são liminarmente despedidas a cada maternidade, apesar de estas práticas serem ilegais. Tudo isto é feito e, pior, aceite como normal, biologicamente determinado, socialmente admissível e irreversível. Por tudo isto, acredito que a luta pelos direitos das mulheres é necessária e urgente, e assumo-me, inevitavelmente, como feminista.
Parabéns às mulheres. E parabéns aos homens – pais, filhos, irmãos, maridos, amigos delas. Oxalá comemorar o Dia Internacional da Mulher se torne um dia irrelevante, por mulheres e homens terem aprendido finalmente a viver como verdadeiros aliados na construção de um mundo melhor.
Artigo publicado pelo Diário de Notícias em 8 de março de 2021.