« (...) A linguagem figurada tem muitas vezes apenas efeitos humorísticos, mas alguns recursos de linguagem figurada, como metáforas, metonímias ou paradoxos ajudam a pensar, são imprescindíveis à compreensão do mundo. Por isso ela é tão frequente em tantos tipos de discurso e por isso é tão castrante para alguém não ser capaz de a compreender. (...)»
Desde que me conheço, uso a ironia com amigos ou até em situações mais formais, e.g. quando dou aulas. Não é nada que eu cultive.
É tão natural ser irónica que muitas vezes a minha maior dificuldade é não o ser quando a ironia é inadequada à situação. Não é uma vestimenta, é uma segunda pele.
A ironia consiste em dizer o contrário do que se pretende, com o objetivo de provocar um efeito humorístico, crítico, sarcástico, trocista. No meu caso, tem muitas vezes um objetivo didático. A ironia insere-se naquilo a que se chama globalmente linguagem figurada, i.e., palavras ou expressões com que se quer veicular um significado diferente ou mesmo oposto do seu sentido convencional, literal. Usamos sentidos figurados muito mais vezes do que se possa pensar (e.g. «um mar de gente», «comer um pacote de bolachas», «morrer de tédio», «ter uma pedra no sapato»). Por vezes sentidos figurados acabam por tornar-se convencionais, lexicalizados (e.g. «navegar na Internet» ou «as costas da cadeira»). A linguagem figurada tem muitas vezes apenas efeitos humorísticos, mas alguns recursos de linguagem figurada, como metáforas, metonímias ou paradoxos ajudam a pensar, são imprescindíveis à compreensão do mundo. Por isso ela é tão frequente em tantos tipos de discurso e por isso é tão castrante para alguém não ser capaz de a compreender.
A linguagem figurada pode, porém, ser muito perigosa. É preciso pensar duas vezes antes de fazer comentários irónicos ou mesmo apenas jocosos, por escrito; tomei consciência deste risco nos meus primeiros tempos de utilizadora de Facebook, quando, em resposta a alguns comentários, me confrontava com acusações de ser má, sádica, cruel, porque ainda não tinha aprendido a assinalar o uso de linguagem figurada com reticências, emoticons ou emojis. De resto, bastas vezes na minha vida, a ironia, por mim usada, mesmo oralmente, foi tomada por maldade nua e crua. ,A máscara torna também o uso de linguagem figurada arriscado; tenho-me apercebido disto nas aulas presenciais, dadas com máscara, quando, pelas expressões dos alunos, depreendo que interpretam alguns enunciados como sarcásticos ou trocistas.
A compreensão da linguagem figurada e dos seus propósitos constitui uma aquisição tardia para as crianças, por esta ser muito mais complexa do que a linguagem literal; devemos, por isso, estar prevenidos para os efeitos indesejados de repreensões irónicas do tipo «está bonito, não está?». Mas o mais perigoso de tudo é tentar usar linguagem figurada com néscios, i.e., com pessoas que pura e simplesmente são incapazes de processar qualquer uso não literal da linguagem, de identificar uma metáfora ou uma alegoria, ou de ter uma centelha de sentido de humor. Pessoas assim apenas veem o mundo a preto e branco, são facilmente recrutáveis por um qualquer charlatão, idiotas úteis de um qualquer fundamentalismo, carne para canhão ao serviço de uma qualquer conspiração. São os mais puros fanáticos! Não têm sentido crítico e só conhecem a literalidade da linguagem e do mundo. Por isso podem ser perigosos, muito perigosos.
Os noticiários da última semana [de 3 a 9 de dezembro de 2020] fizeram-me pensar nestas coisas.
Crónica da autora publicada no Diário de Notícias em 11 de janeiro de 2021.