«(...) Antes de sairmos repudiando qualquer expressão que nos pareça ilógica, redundante ou exagerada, é muito importante termos em mente (mais uma vez) que português não é matemática (...).»
Esta não é a primeira vez que tento demonstrar como a hiper-racionalização da língua é prejudicial à sua expressividade e não encontra guarida sequer em nossos melhores escritores.
Quando falo de hiper-racionalização, refiro-me a enxergar as manifestações em português com um olhar puramente lógico, quase matemático, em que dois mais dois têm de ser quatro – sem variações, sem nuanças, sem graus, de modo que tudo seja liso, redondo, aparado, nada sobrando.
É dessa perspectiva que surgem certas «condenações condenáveis», como gosto de chamá-las, porque muitas vezes são refutadas pelos próprios gramáticos e pelos exemplos literários: é o caso de «junto com», «nem tampouco», «já não mais» e outras aparentes redundâncias que, rechaçadas pelos racionalistas mais rigorosos, recebem o abono daqueles especialistas e escritores de peso.
Pois recentemente ouvi mais duas:
1) «Não se pluralizam termos abstratos como saudade»;
2) «Atenção e informação não têm tamanho para que se diga "Maior atenção", "Maiores informações"».
Ora, é tão difícil assim compreender a dimensão emotiva que o homem dá às suas próprias expressões?
Não deixemos a matemática passar a tesoura da estrita lógica nas asas da língua portuguesa.
1) Ao dizer «Tenho saudades», «Fiquei com ciúmes», «Sinto tantas alegrias», é evidente que esses substantivos abstratos não são contáveis e não podem multiplicar-se de fato, como se houvesse aí várias unidades de saudade, ciúme e alegria: "duas saudades", "oito ciúmes", "cinquenta e nove alegrias"… É claro que não.
O que não podemos nem devemos esquecer – e muito menos condenar – é que a língua também se vale das figuras, das imagens, das ênfases, dos exageros. O sujeito que diz «sentir “saudades», e não «saudade», sem dúvida alguma está imprimindo em seu sentimento uma intensidade que a mera saudade não é capaz de exprimir: ao dobrá-la, pluralizá-la, acaba também por aumentá-la, demonstrando ao ouvinte ou leitor o quão forte é a dor da distância em seu peito.
Não nos faltam escritores que multiplicaram o que em tese não se poderia multiplicar, por abstrato:
«Ontem fui ao cemitério e depositei sobre a sua sepultura uma capela de SAUDADES.»
(Joaquim José da França Jr.)
«D. Camila resolveu, enfim, despedir-se desses dignos anfitriões, e fê-lo ralada de SAUDADES.»
(Machado de Assis)
«…mas ficou inquieto.Já então lhe notara certas TRISTEZAS, ABATIMENTOS inexplicáveis…»
(Eça de Queirós)
«…as suas DORES recalca-as forçadamente estoico…»
(Euclides da Cunha)
«…como se estivesse diante do nosso Santo Redentor confessando as minhas CULPAS.»
(José de Alencar)
2) Quando se diz «Maior atenção», «Maiores informações», também é evidente que ninguém atribui altura ou medida alguma a tais substantivos abstratos.
Ocorre, porém, que os adjetivos maior e menor não dizem respeito apenas a grandezas físicas (altura ou volume). Basta consultar o dicionário Houaiss para concluir que condenações nesse sentido são infundadas:
Maior: «1. que supera outro em número, grandeza, extensão, intensidade, duração, importância, superioridade, excelência».
Quando, pois, se fala de «Maior atenção» ou «Maiores informações», o adjetivo maior está demonstrando uma superioridade não de grandeza física, mas de intensidade e duração (no caso da atenção) ou de importância e extensão (no caso da informação).
Tentar desabonar esse emprego pensando em apenas um detalhe de suas acepções é perder completamente de vista os múltiplos sentidos que o mesmo adjetivo pode carregar.
Não é à toa que também nossos escritores usaram expressões afins sem problemas:
«…achava que eu estava dando MAIOR ATENÇÃO do que devia a uma escrava…»
(Machado de Assis)
«…ia observando com MAIOR ATENÇÃO o estado dos terrenos…»
(José de Alencar)
«…e não lhe deu MAIOR ATENÇÃO.»
(Júlio Dinis)
«…acolheram-me com as MAIORES ATENÇÕES.»
(Franklin Távora)
«…não acha a propósito entrar agora em MAIORES EXPLICAÇÕES.»
(Júlio Dinis)
«A senhora deve sentir muito, e Leopoldo com MAIOR RAZÃO, de serem privados…»
(José de Alencar)
«…suscitara sem MAIOR MOTIVO do que os ditames da ambição pessoal…»
(Afonso de E. Taunay)
Antes de sairmos repudiando qualquer expressão que nos pareça ilógica, redundante ou exagerada, é muito importante termos em mente (mais uma vez) que português não é matemática, e consultarmos escritores e gramáticos de peso, a fim de ver se recomendam ou rejeitam tais manifestações.
Se continuarmos ignorando as figuras, sentidos e diferentes intenções que nosso idioma tão rico traz em si, em breve acabaremos riscando «dente de alho» do vocabulário – porque, afinal de contas, alho não tem dente.
Texto publicado no mural do Facebook Língua e Tradição, com a data de 5 de novembro de 2022.