«(...) [D]iferente da mentira que é usada para se fazer acreditar, a ironia não é usada para alguém se fazer entendido, mas para promover uma crítica, uma reflexão, um efeito humorístico. (...) »
No estudo das figuras de linguagem, professores e professoras sempre tendem a abordar aquelas mais consagradas, tais quais as metáforas, as metonímias e as prosopopeias. Entretanto, à força de defini-las como mais didatismo e não raro mais simplicidade, corre-se o risco de se eliminarem nuances próprias dessas figuras de estilo, o que gera ou um entendimento raso ou mesmo uma compreensão equivocada.
Um conceito que sofre constantemente esse problema é a ironia, isso porque ela é descrita e explicada em sua acepção unicamente verbal: figura que consiste em se dizer o contrário do que se pensa.
Entretanto, como associar esse sentido a situações mais plurais da vida? Por exemplo, quando se diz que Machado de Assis (1839-1908) é irônico, não nos pareceria simplista acreditar que a força da narrativa do autor reside somente em se dizer algo contrário ao que se pensa? Outro exemplo, quando, em nosso cotidiano, vemos uma determinada cena ou acontecimento corriqueiro e comentamos: «que situação irônica!», será que ocorreu algo contrário ao que se pretende dizer?
Em realidade, o que não se pode perder de vista é que, além da ironia verbal, existem outros tipos: a situação irônica e a ironia dramática. Vamos falar um pouco delas.
Na situação irônica, há um descompasso entre o que acontece e o que se espera acontecer. Por exemplo, estamos na sexta-feira prometendo que vamos descansar todo o final de semana e um amigo nos chama para ajudar com a pintura de sua casa, isso é uma situação irônica; no lugar do descanso recebemos mais trabalho!
O segundo tipo de ironia é o da ironia dramática, própria da literatura e do teatro. Neste caso, o público tem mais conhecimento do que personagens de algo que está ocorrendo. É aqui que está, por exemplo, a escrita de Machado de Assis. No início de seu Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador Brás Cubas comenta que, durante o seu enterro, um homem começa a discursar em favor da memória do finado: «Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a humanidade (...).» Neste momento, entra o narrador machadiano com a sua ironia cortante: «Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei.» A ironia revela o que os outros personagens não sabem: que aquele sentimento aparentemente genuíno só existe fruto de uma compensação financeira.
Olhando os três tipos de ironia acima, vê-se que elas compartilham algo em comum: o contraste entre a realidade e a aparência. Contudo não se pode pensar que este contraste se leve à mentira.
Por que não? Porque diferente da mentira que é usada para se fazer acreditar, a ironia não é usada para alguém se fazer entendido, mas para promover uma crítica, uma reflexão, um efeito humorístico. De acordo com o professor austríaco D.C Muecke em Ironia e o Irônico: «Nos logros existe uma aparência que é mostrada e uma realidade que é sonegada, mas na ironia o significado real deve ser inferido ou do que diz o ironista ou do contexto em que se diz; é "sonegado" apenas no fraco sentido de que ele não está explícito ou não pretende ser imediatamente apreensível. Se entre o público de um ironista existem aqueles que não se dispõem a entender, então o que temos em relação a eles é um embuste ou um equívoco, não uma ironia, embora a sua não compreensão possa muito bem acentuar o prazer da ironia para o público verdadeiro.»
Econômica, pois reduz as informações ao seu essencial; dissimulada, pois apresenta a realidade num contraste com a falsidade; contextual, pois depende do conhecimento de mundo compartilhado para se erigir, a força da ironia está na promoção da crítica, do humor, e no prazer em sua decodificação, traços que, em si, enriquecem e refinam a estética literária e a comunicativa.
Texto do professor universitário brasileiro Roberto Lota, transcrito, com a devida vénia, da página Língua e Tradição, no Facebook, em 13 de novembro de 2020.