Já aqui se disse que, no período galego-português, a língua opunha um par de fricativas a outro constituído por africadas. O ponto de articulação das fricativas era apicolaveolar (já explicarei o que isto é) e o das africadas, predorsodental:
a) surda: pa sso;
b) sonora: co ser.
2. Africadas predorsodentais:
a) surda: pa ço
b) sonora: co zer.
O som das apicoalveolares dá impressão de se encontrar, por assim dizer, a meio caminho entre os sons fricativos predorsodentais de caçar e azar e os fricativos palatais de baixar e viajar. Calculo que, no Brasil, possam ser ouvidos a alguns imigrantes portugueses provenientes do Centro-Norte e do Norte de Portugal e talvez também a italianos que tenham origem na Emília Romanha e no Véneto. Como o nome indica, na articulação destes sons, o ápice da língua fica junto dos alvéolos dentais; em termos práticos, é como pronunciar um [s] ou um [z] do português actual, só com a diferença de aproximar a ponta da língua da parte interior da gengiva logo acima dos dentes incisivos.
Quanto aos sons africados acima referidos, a consoante surda era pronunciada como [ts], e a sonora, como [dz]; portanto, no período galego-português, paço seria pa[ts]o, e cozer, co[dz]er. Mais tarde as africadas evoluíram para fricativas predorsodentais por perderem a oclusão como modo de articulação, ou seja, perderam os elementos oclusivos [t] e [d]; isto quer dizer que as fricativas paço e de cozer já soariam como os sons [s] e [z] que ouvimos nessas palavras nos actuais padrões de Portugal e do Brasil. No século XVI, teríamos, portanto, dois pares de fricativas na norma-padrão: as apicoalveolares de passo e coser, e as predorsodentais de paço e cozer.
Entretanto, durante o século XVI, se não antes, muitos falantes foram deixando de contrastar tais pares. Assim, no português europeu-padrão, em todo o litoral e no Centro-Sul, as fricativas passaram a ser sempre articuladas como predorsodentais; no interior centro e em partes do Douro Litoral e do Minho, prevaleceu a articulação apicoalveolar. A pronúncia predorsodental tornou-se mesmo predominante em todo o espaço de língua portuguesa, porque parece não haver vestígios da articulação apical nas antigas colónias portuguesas. Quanto ao interior nordeste de Portugal (e, acrescente-se, numa pequeníssima região galega, a Baixa Límia, junto da serra do Gerês), pode afirmar-se que se conservou o sistema de dois pares de fricativas do século XVI, reflectindo uma oposição ainda mais antiga, a das africadas e fricativas no galego-português.
Fonte: Esperança Cardeira, O Essencial sobre a História do Português, Lisboa, Editorial Caminho, 2006.