É provável que, na língua da Idade Média, a conjunção e tenha correspondido a uma vogal menos fechada do que [i], como o é de sé ou o ê de lê. Era essa a hipótese defendida pelo filólogo português José Leite de Vasconcelos (1858-1841), conforme a seguir se transcreve (citado por José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1987, s. v. e; mantém-se a ortografia do original)1:
«[...] [A] conjunção portuguesa e soa hoje i, mas deve, em português antigo, ter tido o som de é ou ê;: cfr. ê em galego, é em espanhol antes de palavras que comecem por i, et em francês, e (et, ez, es, etc.) em provençal, e e ed em italiano. Suponho que temos um vestígio da antiga pronúncia portuguesa na familiar locução beirã "um tudenada entre dois pratos", que corresponde à espanhola "nada entre dos platos", que querem dizer "pouca cousa". Quanto a mim, "tudenada" corresponde a tud'e nada onde o e devia soar ê, pois só por ele se explica o e surdo de tudenada. A conjunção portuguesa outrora soava i sòmente antes de vogal (cfr. di ontem, por de ontem), mantendo-se a primitiva pronúncia (é, ê) antes de consoante (cfr. de ti); depois a pronúncia i generalizou-se a todos os casos, isto é: quer antes de vogal, quer também antes de consoante. Em tudenada perdera-se a consciência de que o era conjunção, porque esta expressão apareceu no espírito como se fosse palavra simples, em que o e tinha o valor de qualquer e interior, sem que houvesse motivo espacial para se mudar em i.»2
Convém assinalar que, ainda hoje em galego, a conjunção correspondente se grafa também e, mas, de acordo com Manuel Ferreiro (Gramática Histórica Galega, 1996, pág. 94), pronuncia-se muitas vezes como e aberto (símbolo fonético [ɛ]), embora também ocorra como e fechado (símbolo fonético [e]). Em certos contextos, soa como i (símbolo fonético [j]), quando aparece antes de vogal (idem):
«[N]as secuencias en que intervén a conxunción e (pronunciada frecuentemente como [j] perante palabra que comece por vogal), a conxunción pode abrir a vogal inicial da palabra seguinte:
e+un>[jɔ]n ("e un")
e+el>[jɛl] ("e ele")
e+outro>[jɔ]utro ("e outro"), etc. [...]»
Esta situação assemelha-se à que se verifica em certos dialetos setentrionais portugueses, pelo menos, se atendermos à Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, 128):
«Em parte dos dialetos setentrionais, sobretudo no norte da Beira Alta e em Trás-os-Montes, os artigos definidos podem assumir as formas com vogal aberta [ɔ] e [a] e respetivos plurais, sempre que o contexto à esquerda seja a conjunção copulativa e. Na realidade, trata-se de um facto de fonética sintática, mas cuja incidência na forma do artigo e frequência de uso requerem que se lhes faça menção. O facto resulta do encontro entre duas vogais não acentuadas, [i] à esquerda e [ɐ] ou [u] à direita; esse encontro provoca o aparecimento na 2.ª posição, respetivamente, de um [a] (cf. (48)) ou de um [ɔ] (cf. (49)):
(48) a. Foi a minha cunhada [i a] (= e a) senhora Maria (ALEPG, Seixas, Guarda)[...]
(49) a. Toda a vida teve moinho, ela [i ɔ] (= e o) homem. (ALEPG; Penas Roias, Bragança) [...]»3
Em nota, na mesma fonte, acrescenta-se que este facto também se deteta quando a conjunção precede a preposição a ou o demonstrativo aquele (idem, pág. 128, n. 63): «Ir a Macedo [i a] (= e a) Peso [da Régua]» (ALEPG, Penas Roias, Bragança); «Este tem quatro [i akélɨ] (= e aquele) só tem três [dentes]» (ALEPG, Travanca, Bragança).
1 O linguista português Fernando Brissos (Linguagem do Sueste da Beira no Tempo e no Espaço, tese de doutoramento, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2011, pág. 314/315) considera plausível esta hipótese, mas observa que em documentos da Beira Baixa do séc. XIV já se encontra a escrita de i antes de grafema consonântico, o que sugere que a articulação da conjunção já teria oscilações, podendo mesmo corresponder à realização de um [i] antes de consoante.
2 Em espanhol (ou, se se preferir, em castelhano), a conjunção copulativa tem geralmente a grafia y, com a variante e (sem acento gráfico) antes do som [i]: «Eres único e irrepetible»; «Necesito aguja e hilo» (Diccionario Panhispánico de Dudas, s.v. y).
3 ALEPG = arquivo sonoro do Atlas Linguístico-Etnográfico de Portugal e da Galiza.