DÚVIDAS

A diferença entre uma consoante fricativa e uma africada

Gostaria, primeiramente, de agradecer ao professor Carlos Rocha que tão gentilmente respondeu a minha pergunta que recebeu o título de “Africadas, fricativas e galego-português”.

Entretanto, tomo a liberdade de pedir alguns esclarecimentos, sobre aspectos que, ainda, não pude compreender perfeitamente, esperando que não seja incómoda a minha nova pergunta sobre assunto que, anteriormente, já abordara:

I) Qual é a diferença de uma consoante fricativa e uma africada?

II) No galego-português medieval havia somente os seguintes sons: [ts], [s], [dz] e [z], sendo excluído os sons apicoalveolares?

III) As palavras atualmente escritas em português com "s-", "-s-" "-ss-",como "sapato", "casa","passo", eram outrora pronunciadas como, atualmente, pronuncia-se o "z" na pronúncia do espanhol de Madri, ou seja [ө]?

Desde já muito agradeço a tão gentil atenção a mim concedida.

Resposta

Agradeço as suas amáveis palavras. É com muito gosto que trato deste tópico.

I. Uma consoante fricativa é produzida pela redução do bloqueamento do tracto vocal a uma abertura estreita, «pela qual o ar passa forçado, produzindo um ruído de fricção, [...] como [f] ou [z] (R. L. Trask, Dicionário de Linguagem e Lingüística, São Paulo: Editora Contexto, pág. 64). São consoantes fricativas do português: [f] — fama; [s] — sapato; [ʃ] — chamar, baixo; [v] — vento; [z] — zebra; [ʒ] — janela, gira.

Uma consoante africada corresponde primeiro ao bloqueamento completo do tracto vocal, seguido de uma pequena abertura que produz um ruído de fricção, como em [ts] ou [tʃ] (ibidem).

As consoantes africadas não existem na norma-padrão do português europeu, mas ocorrem noutras variantes, por exemplo, em dialectos portugueses setentrionais — chamar/[tʃɐmaɾ] ou chave/[tʃavɨ] — e no português do Brasil, quando [i] se segue a [t] ou [d] — p. ex., tia/[tʃia] e dia/[dƷia] —, ou como tch, por exemplo, em Tchecoslováquia.

II. Não. O que se diz na resposta é que havia, além das africadas [ts] e [dz], as apicoalveolares [ʂ] e [ʐ]. Mais tarde as africadas perderam o elemento oclusivo ([t] ou [d]) e tornaram-se também fricativas, só que predorsodentais [s] e [z]. Estes sons tomaram igualmente o lugar das apicoalveolares no português-padrão moderno tanto no Brasil como em Portugal; deste modo, letras ou sequências como s, -ss-, ç e c (esta última, antes de e ou i) pronunciam-se todas da mesma maneira, com [s], uma fricativa predorsodental surda; o mesmo acontece com -s- entre vogais e z, que correpsondem a [z], uma fricativa predorsodental sonora.

III. O som [θ], uma fricativa interdental surda, não está documentado nos dialectos portugueses (mas existe nos dialectos galegos). Este som surgiu em castelhano na sequência da evolução de [ts] e [dz]: cereza — [tseɾedza] > [θeɾeθa]. Em português antigo e clássico os grafemas s e -ss- representavam geralmente uma apicoalveolar surda, que historicamente não tinha a mesma origem que o zeta castelhano. Os grafemas ç e c (antes de e ou i) é que correspondiam a sons que tinham a mesma origem, mas que nunca chegaram a ser articulados como o referido som do castelhano.

Observe-se, porém, que a grafia de sapato é uma excepção, porque historicamente a palavra foi escrita como çapato, justamente para indicar que começava com africada (depois, predorsodental) enão com apicoalveolar. A grafia de sapato deve-se ao facto de nas reformas ortográficas do século XX se ter considerado que neste e noutros casos, e perante o seu escasso número, era dispensável escrever ç em posição inicial.

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