Qual é a origem das línguas ibéricas? - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Qual é a origem das línguas ibéricas?
Qual é a origem das línguas ibéricas?
Apontamentos da história linguística de Espanha e Portugal

 «[...] [A]s línguas latinas partilham muitas palavras e muitas características gramaticais que não partilham com as línguas vizinhas. Para chegar a esta conclusão é preciso estudar com afinco as palavras, as características gramaticais — e há muitas hesitações, caminhos errados, descobertas. Mas consegue-se.»

 

Que línguas se falavam antes da chegada do latim?

Os linguistas, desde o século XIX, estudam a história antiga das línguas, antes mesmo da escrita, através do método comparativo. Como funciona este método? Sabendo que as línguas tendem a divergir, presume-se que divergem de um ponto comum, no passado. Assim, comparando-as, conseguimos encontrar famílias de línguas com a mesma origem mais ou menos remota.

Todos sabemos, por exemplo, que as línguas românicas têm origem no latim. Há, aliás, alguns vestígios escritos que permitem chegar a essa conclusão – e há, acima de tudo, o próprio latim escrito com o qual podemos comparar as línguas românicas actuais, encontrando facilmente linhas de continuidade e divergência que apresentam muita regularidade.

No entanto, se não conhecêssemos o latim, conseguiríamos mesmo assim encontrar semelhanças suficientes entre as línguas latinas para reconstruir com alguma segurança muitas das características dessa língua-mãe.[1]

  • Catalão: amor
  • Espanhol: amor
  • Francês: amour
  • Italiano: amore
  • Português: amor
  • Romeno: amor

Se não soubéssemos latim, poderíamos concluir que estas proximidades são fruto da coincidência? É difícil, com tantas línguas a acertar na palavra. Podia ser uma questão de empréstimo? Sim: o islandês, por exemplo, também tem a palavra «amor». Aliás, se olhássemos para a palavra «rosa», pareceria que as línguas germânicas e as latinas têm a mesma origem:

  • Francês: rose
  • Alemão: Rose
  • Holandês: roos
  • Dinamarquês: ros
  • Inglês: rose
  • Espanhol: rosa
  • Português: rosa

É por esta razão que o método comparativo não funciona com uma palavra isolada. Funciona com muitas palavras e traços gramaticais, rigorosamente comparados.

O certo é que as línguas latinas partilham muitas palavras e muitas características gramaticais que não partilham com as línguas vizinhas. Para chegar a esta conclusão é preciso estudar com afinco as palavras, as características gramaticais – e há muitas hesitações, caminhos errados, descobertas. Mas consegue-se. E consegue-se mais ainda: sabendo as alterações típicas de cada língua mais recente, podemos reconstruir a língua original.

No caso do latim, não temos de reconstruir a língua original. No entanto, este método (o método comparativo) permitiu-nos descobrir que o latim do qual descendem as línguas românicas não é exactamente o mesmo latim dos textos escritos clássicos. A língua da oralidade nunca é igual à da escrita. A língua formal nunca é igual à língua da rua. E, na verdade, as nossas línguas actuais descendem do latim da rua e não do latim dos livros.

Pois bem: se olharmos para o que veio antes do latim, não temos registos escritos. Mas o método comparativo deu os seus interessantíssimos frutos: descobriu-se que quase todas as línguas da Europa descendem duma língua comum. Essa língua deu também origem às línguas iranianas (o persa, por exemplo) e às línguas do Norte da Índia. Assim, o nome que lhe foi dado é este: proto-indo-europeu. As investigações linguísticas permitiram também descobrir onde vivia o povo que falava essa língua – com toda a probabilidade, no território que é hoje a actual Ucrânia.[2]

Essa tribo indo-europeia espalhou-se e invadiu os territórios vizinhos. O certo é que quase toda a Europa fala hoje línguas que descendem da língua desse povo. As excepções são curiosas: o turco, falado no pequeno território turco na Europa; o húngaro, finlandês e estónio, com origem em povos que chegaram à Europa já depois da expansão indo-europeia, vindos das profundezas da Sibéria; o maltês, aparentado com o árabe; e o basco, num recanto da Península Ibérica.

Bem, mas pensemos nesses indo-europeus, pais das línguas da Europa quase toda. Chegaram à nossa península ali entre os séculos VIII e VI a.C. Encontraram povos autóctones que podemos chamar de iberos, embora saibamos muito pouco deles. Estes invasores indo-europeus são muitas vezes referidos como celtas – por esta época já o povo indo-europeu estava dividido em várias famílias linguísticas e a primeira invasão foi desses celtas.

Foram esses povos que os romanos e os povos germânicos que se lhes seguiram vieram encontrar – note-se que, na península, o latim foi introduzido não apenas pelos romanos, mas pelos germanos que vieram governar a península e que já tinham adoptado o latim.

 

O que aconteceu depois da chegada do latim?

1554719790091_lapide_latim_Fundao.jpgO latim apagou as línguas anteriores, tanto as pré-indo-europeias, como as indo-europeias – excepto o basco, que sobreviveu a isto tudo.[3] Diga-se que as línguas anteriores influenciaram a maneira como a população aprendeu latim – e terão tido influência no particular percurso do latim até às várias línguas ibéricas. Essa influência é particularmente importante quando uma população adulta aprende outra língua. Um adulto já não consegue aprender uma língua como se fosse um falante nativo: a máquina de reconstruir a gramática começa a desligar-se na adolescência. Ora, se uma população adulta aprende uma língua, aprende-a de forma simplificada e com características fonéticas da sua língua materna. Ora, se muitos habitantes da nossa península aprenderam latim já na idade adulta, aprenderam-no como estrangeiros – e é desse latim mal aprendido que nasceram as nossas línguas…

Ora porque tinha sido trazido por soldados, ora porque tinha sido trazido por germanos que o tinham aprendido como adultos, ora porque foi aprendido na idade adulta pelas populações da península, o certo é que, pelas ruas da Península, o latim da população era diferente do latim de Roma – e do latim da escrita. Claro que a norma terá tido o seu efeito: muitos aprenderam o latim clássico e talvez alguns falassem quase como em Roma. Mas é dessas correntes de profundas mudanças que nasceram as nossas línguas de hoje em dia.

Nesta história abreviada, chegamos ao século VIII. Chegam os muçulmanos. A península divide-se em duas zonas. A sul, os muçulmanos governam e a população continua a falar o tal latim da rua, mas agora com muita influência da nova língua de prestígio: o árabe.

A norte, cria-se uma série de reinos, principados e condados cujo principal propósito era reconquistar território aos muçulmanos, para sul. A língua era ainda o latim, mas o latim que se afastava cada vez mais do latim clássico.

Nestas guerras entre norte e sul e nesta expansão vemos a história das línguas e dos povos actuais – entre elas a história da origem da língua portuguesa.

 

Qual era a situação por volta do ano 1000?

É um bom ano para pararmos um pouco nesta nossa viagem: redondo e fácil de encontrar nas cronologias.

No sul da Península, temos um grande território sob domínio muçulmano. Lá em cima, uma faixa cristã. Tirando a elite de língua árabe no Sul, quase toda a população da península fala qualquer coisa que descende do latim. Os cristãos sob domínio muçulmano falam um latim tardio a que hoje chamamos moçárabe. É um romance com muitas palavras árabes (compreensivelmente). Há-de ter alguma importância na história que estou a contar.

Ali num canto, onde os Pirenéus encontram o Atlântico, um velho povo resiste com a sua língua pré-latina. Aliás, pré-indo-europeia. Falo dos bascos. Nesse canto, o latim não entrou. Ou melhor, entrou, mas não fez desaparecer a língua que lá havia antes.

Deixemos, para já, o basco no seu recanto (havemos de lá voltar). Toda a faixa norte está ocupada pelos reinos, condados e demais entidades mais ou menos duradouras que se ocupam a ir conquistando a península de cima para baixo.

As fronteiras entre os reinos são muito, mas mesmo muito maleáveis. Surgem e desaparecem reinos entre a manhã e a tarde do mesmo dia. Talvez exagere: mas entre o nascimento e a morte de um rei, entram e saem territórios com grande à-vontade. Imagino que muitas pessoas tenham vivido a sua vida sem saber muito bem a que reino pertenciam.

Conhecemos alguns nomes: Astúrias, onde se deu a famosa – e provavelmente mítica – batalha de Covadonga. Aragão. Leão. Castela. Catalunha. Galiza. Portugal…

A lista acima está desordenada – não importa. O que importa, agora, é pensar na questão das línguas.

Pois, as línguas ibéricas, muito por culpa do processo de conquista, foram criadas nessa faixa norte e, depois, expandiram-se para sul, comendo o território ao moçárabe (que, no entanto, não desapareceu por completo – influenciou essas mesmas línguas no processo de expansão para sul).

 

Uma história em cinco faixas

Para percebermos o que se passou, dividamos a tal faixa norte em cinco parcelas, mais ou menos iguais, que correspondem a cinco línguas.

 

Isto é uma simplificação. Nas fronteiras entre as parcelas, havia muita mistura – aliás, estamos perante um continuum dialectal, ou seja, um território onde não há fronteiras muito definidas entre línguas (excepto, neste caso, as fronteiras do basco).

Esta divisão em cinco parcelas ajuda-nos muito a perceber a origem – e a situação actual – das línguas ibéricas. A sua expansão foi na vertical: de norte para sul – embora a língua central tenha começado a engordar, atropelando as vizinhas.

Comecemos a história pelo V, encostado ao Mediterrâneo, para terminar no I, encostado ao Atlântico.

Na faixa V, desenvolveu-se a língua que hoje conhecemos, em geral, como catalão. O catalão está muito próximo do occitano, uma língua falada no sul de França[4]. Está também próximo do francês. Isto, no que toca ao léxico. Note-se, por exemplo, palavras como «parlar», «manjar»… Ou «por», muito mais próximo do «peur» francês do que do «miedo» castelhano.

O catalão foi a língua principal da corte dos soberanos da Coroa de Aragão. Barcelona era a principal cidade, embora a capital fosse dupla: Saragoça e Barcelona. As línguas da corte eram também duas: aragonês e catalão. No entanto, na verdade, o catalão era a língua de mais prestígio, língua de Barcelona, a principal cidade marítima do território, língua por excelência daquela Coroa e da sua expansão pelo Mediterrâneo. Ainda hoje temos vestígios dessa expansão: há uma terra na Sardenha onde o catalão ainda se ouve entre as gerações mais velhas. Note-se que, em Valência, o nome habitual que se dá à língua própria da região é «valenciano» – se o valenciano é uma língua própria ou um nome alternativo para o catalão é discussão que ocupa muitos valencianos. Os linguistas, em geral, consideram o valenciano como um glotónimo (nome de língua) do catalão.

Saltemos (por agora) por cima da faixa IV e avancemos para a faixa do meio, a III. Falamos do castelhano – esta língua acabou por ser a língua de uma importantíssima coroa. Ganhou prestígio. Expandiu-se para sul, a cavalo da coroa castelhana – e pelo mundo a cavalo da expansão marítima. Entretanto, começou também a ser chamada «espanhol». Desta forma, é uma língua com dois glotónimos: «castelhano» e «espanhol». Com estes dois nomes, é língua de muitos países e oficial em toda a Espanha.

Repare-se que o castelhano surgiu encostado ao basco. Ora, isto tem a sua importância. Há características muito castelhanas, que distinguem a língua das sua vizinhas, que talvez tenham vindo do basco. Um dos exemplos por vezes apontados é a pobreza vocálica: tanto o basco como o castelhano têm poucas vogais (apenas cinco), enquanto as línguas vizinhas (o catalão e o português, por exemplo) têm muitas mais. Apetece dizer que o castelhano era o romance ibérico falado por gente habituada a ouvir e a falar basco.

O II e o IV são as duas faixas em que as línguas mais se perderam. Hoje, nenhuma delas é oficial, embora sejam reconhecidas como património cultural pelas Astúrias e por Aragão.  Nestas faixas, a expansão para sul ficou cortada pela expansão do castelhano e do catalão. Hoje em dia, estão em perigo de desaparecer. A língua da faixa II, no entanto, é oficial… em Portugal! Sim, esta língua tem vários nomes e variedades. É o asturiano, mas também o leonês – ou o mirandês! O mirandês faz parte desta segunda faixa.

Chegamos, por fim, à faixa I. O galego – e o português… Tudo indica que a nossa língua começou nesse noroeste da Península, muito antes da criação de Portugal. Ninguém lhe daria nome, mas como estamos na Galécia, podemos falar de galécio – ou galego.

Quando chegamos ao século XII, a língua na rua era o tal galego, designado pelos seus falantes usando a palavra «linguagem» – era a linguagem da fala dos galegos e dos novíssimos portugueses. A língua dos documentos oficiais era, ainda, o latim. Note-se que, antes de se tornar oficial em Portugal, a língua foi usada, com muito proveito, para as produções artísticas da corte de vários reis. O rei castelhano Afonso X escreveu boa poesia na nossa língua!

Quando Afonso Henriques criou o reino de Portugal, a faixa I das línguas ibéricas, a mais ocidental, ficou dividida por uma fronteira política que veio a revelar-se uma das mais resistentes de todo o mundo. O Reino de Portugal expandiu-se de norte para sul e levou com ele a língua, que sofreu influências do moçárabe. Algumas gerações depois, a corte de D. Dinis transformou a tal linguagem trazida do Norte na língua oficial do reino. Em breve, começaria o processo de criação de uma norma escrita. Mas essa já é outra história…[5]

 

Referências e notas

A parte inicial do capítulo aqui reproduzido foi publicada nesta página [Certas Palavras] com o título "Pequena História das Línguas". O mapa é baseado no mapa preparado por Miguel Durán para o livro.

[1] Há mais línguas latinas, mas deixei apenas alguns exemplos. Em dálmata – uma língua já desaparecida – a palavra era «amaur». Referi essa língua no artigo "O que perdemos quando morre uma língua?" [blogue Certas Palavras] 

[2] Há vários livros sobre o indo-europeu. Um volume que uso, por vezes, é Indo-European Language and Culture: An Introduction (John Wiley & Sons, 2011), de Benjamin W. Fortson IV.

[3] O basco já foi personagem destas paragens em muitos artigos [do blogue Certas Palavras]. Proponho o seguinte: «Qual é a língua mais antiga do mundo?»

[4] Há uma pequena região da Catalunha onde o occitano é língua oficial, em conjunto com o catalão e o espanhol. Chama-se Vale de Aran e a língua tem, por lá, o nome de «aranês».

[5] Em breve, será publicado um livro de Fernando Venâncio, com um estudo aprofundado sobre a origem da nossa língua.[*]

 

[* N. E. – O texto em que se baseia o artigo é de meados de 2019, e, portanto, o autor faz referência ao lançamento de Assim Nasce uma Língua, que ocorreu poucos meses depois no mesmo ano.]

Fonte

Artigo publicado no blogue Certas Palavras em 16 de agosto de 2019 e baseado numa secção do seu  livro O Galego e o Português São a Mesma Língua? (Através Editora, 2019).

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