Que relação se pode definir na atualidade entre o português e o galego? E que consequências terá essa relação para a própria maneira de ver a língua portuguesa? São estas duas das questões que Fernando Venâncio, escritor, ensaísta e professor português na Universidade de Amesterdão, abordou numa palestra realizada em 6/05/2014 na Orfeu – Livraria Portuguesa e Galega, em Bruxelas. O texto que a seguir se divulga é um resumo gentilmente cedido pelo próprio autor (que aparece à esquerda na foto).Respeitou-se a grafia seguida pelo autor.
Aquilo que mais marcadamente distingue o português de outras línguas, e em particular do castelhano, tem-no ele em comum com o galego. Isto mostra que galego e português funcionam largamente com um único sistema. Podemos enumerar, no interior dele, algumas particularidades de tipo fonológico, morfológico, sintáctico e pragmático. Utiliza-se, aqui, a grafia portuguesa.
a) sete vogais tónicas orais: a, ê, é, i, ô, ó, u
b) metafonia verbal (como, comes; bebo, bebes)
c) multiplicidade de ditongos decrescentes (pai, cheguei, deu, pois, pouco)
d) queda das consoantes intervocálicas latinas L (cor, dor, geada, moer, pia, sair, vigiar), N (areal, coroa, doar, lua, soante, ter, vir) ou outras, resultando numa extrema compactação (pá, sé, só, nó, dó, mó, pó, nu)
e) contracções preposição + artigo ou pronome (ao, à; do, da; no, na / deste, neste / doutro, noutro)
f) formas pronominais (eu, nós, vós / o meu (tio), a minha (tia), o teu, a tua o nosso, a nossa / isto, isso, aquilo / dois, duas), adverbiais (cedo, ontem, perto, onde, além, ainda, doravante, prestes, algures), preposicionais (até, após)
g) infinitivo conjugado (é para levares), futuro do conjuntivo (se formos)
h) colocação dos clíticos (Pagaram-te tudo?, Fala-se galego)
i) artigo + nome próprio (a Teresa, o Pedro)
j) resposta em eco (Sabes? Sei / Tendes? Temos).
No domínio do léxico, galego e português compartilham muitas centenas de formas exclusivas em substantivos, adjectivos, verbos. Exemplos de adjectivos: cheiroso, ferrenho, infindo, jeitoso, meigo, morno, pândego, soalheiro, vadio. Exemplos de verbos: aconchegar, cheirar, definhar, encher, esmagar, espreitar, esquecer, estragar, findar, magoar, mergulhar, poupar, rejeitar. Os verbos derivam, genericamente, de formas latinas em circulação no Noroeste da Península Ibérica.
Todas estas características exclusivas do galego e do português (e outras existem) formam um sistema. É um sistema imensamente produtivo. Podemos dar-lhe o nome de galego-português, embora não sem alguma reserva. Essa designação foi forjada, ainda no século XIX, por Carolina Michaëlis, grande filóloga de origem alemã. Servia para qualificar o idioma em que a produção lírica medieval peninsular, então recentemente descoberta, fora redigida. É uma designação de compromisso. A esmagadora maioria dos poetas era galega, mas o Reino de Portugal já estava fundado, houve mesmo um rei português, Dinis, que poetava com talento, e Carolina terá intuído que chamar galego àquele idioma podia ferir susceptibilidades na sua segunda pátria. Só que, no fundo, isto tem menos importância do que parece: a língua das Cantigas era, em si, um código profissional, uma convenção entre artistas. Da língua autêntica da altura, pouca documentação escrita hoje resta.
E como seria essa língua viva, circulante? Bom, exactamente aquela que as particularidades acima expostas põem à vista. Ela havia sido gerada na Galécia Magna, um território que o linguista Joseph Piel desenhou como descendo obliquamente duma longa linha de costa do Mar Cantábrico até ao Vale do Vouga. Por 1200, quando a Galiza e Portugal já encetaram caminhos políticos diferentes, esse idioma encontra-se estendido até ao paralelo de Lisboa.
Simplesmente, essa língua ‒ ainda sem nome ‒ possui já todas as características acima apontadas. Numa palavra: o sistema está pronto, reconhecível, irredutível. Existem decerto hesitações, formas híbridas, a normalização ainda vem longe. Mas o sistema, esse, produz e funciona com naturalidade.
Só que um sistema com tal abrangência e tal complexidade pressupõe, não anos, não decénios, mas séculos de desenvolvimento. Isto significa que, muito antes de Portugal (ou o seu núcleo inicial, o Condado Portucalense) existir, já o essencial deste nosso idioma era forma de comunicação ‒ mais uma vez, reconhecível, irredutível ‒ na Galécia, uma comunidade económica, cultural e até demograficamente importante. Certo: a cidade de Braga teve um papel de relevo na Galécia, como capital do Reino Suevo e centro cultural de primeira ordem. Só que, de Portugal, nem a mínima ideia existia por então.
A conclusão só pode ser esta: ainda que nunca houvesse surgido um Portugal, o fundamental deste idioma, o seu sistema, teria existido. Sem dúvida: o êxito histórico do projecto «Portugal» terá sido decisivo para a robustez, e decerto a expansão, do sistema que designamos como galego-português. Mas em momento nenhum esse sistema precisou de um Portugal para existir.
Na historiografia da língua portuguesa, sempre a intimidade de relações de português e galego foram um tabu. Nas melhores tomadas de posição, encara-se o galego como forma de «português arcaico» ou descreve-se um (verídico, embora frustrado) processo de «desgaleguização» do idioma em território português após 1400. Em suma, a atenção dirige-se sistematicamente para as diferenças da norma, nunca para as coincidências do sistema.
É provável que esta visão portuguesa seja a única possível, aquela que não faz perigar o mito da Pátria providencialmente perfeita, exemplarmente original. Os investigadores da identidade o dirão. Mas pode lamentar-se que a historiografia linguística portuguesa tenha sido, sempre, tão serviçal aos parâmetros ideológicos.
A questão de serem português e galego, hoje, o mesmo idioma não fica aqui respondida. Digamos que, num momento em que, no Brasil, se defende a emancipação definitiva da norma brasileira frente à europeia, a identificação de galego e português não é o debate mais premente. De momento, o mínimo desejável seria um explícito reconhecimento por parte de todos os implicados ‒ linguistas, políticos e agentes culturais dos países de língua oficial portuguesa e da Galiza ‒ da essencial contiguidade dos dois idiomas. É certo que, nos meios académicos, se pratica, desde há muito, um tácito, discreto, reconhecimento, mas importaria passar a atitudes explícitas.
O galego-português como sistema pode ter-se como dado adquirido. Seria conveniente que esse dado saísse, rapidamente, dos gabinetes, tornando-se para todos uma referência cultural. Para falantes de português, sobretudo europeus, isso significará uma perspectiva inesperada. Mas nenhum mito, mesmo se aconchegante, precisa de durar para sempre.
1Agradecimentos a Paulo J. S. Barata, a cuja intervenção se deve a disponibilização deste texto no Ciberdúvidas.
Cf. Um português consegue falar galego?
Resumo da palestra que o autor proferiu em 6 de Maio de 2014 na Livraria Orfeu em Bruxelas.