É verdade que o k, como o w e o y, passou a fazer parte do alfabeto português com Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90). Contudo, recordamos que estas letras não passaram a ser usadas livremente; pelo contrário, estão limitadas a «casos especiais», conforme dispõe o próprio AO 90 na sua Base I, 2 e 3:
«2 As letras k, w e y usam-se nos seguintes casos especiais:
a) Em antropónimos/antropônimos originários de outras línguas e seus derivados: Franklin, frankliniano; Kant, kantismo; Darwin, darwinismo; Wagner, wagneriano; Byron, byroniano; Taylor, taylorista;
b) Em topónimos/topônimos originários de outras línguas e seus derivados: Kwanza, Kuwait, kuwaitiano; Malawi, malawiano;
c) Em siglas, símbolos e mesmo em palavras adotadas como unidades de medida de curso internacional: TWA, KLM; K-potássio (de kalium), W-oeste (West); kg-quilograma, km-quilómetro, kW-kilowatt, yd-jarda (yard); Watt.
3 Em congruência com o número anterior, mantém-se nos vocábulos derivados eruditamente de nomes próprios estrangeiros quaisquer combinações gráficas ou sinais diacríticos não peculiares à nossa escrita que figurem nesses nomes: comtista, de Comte; garrettiano, de Garrett; jeffersónia/ jeffersônia, de Jefferson; mülleriano, de Müller; shakesperiano, de Shakespeare.
Os vocabulários autorizados registarão grafias alternativas admissíveis, em casos de divulgação de certas palavras de tal tipo de origem (a exemplo de fúcsia/ fúchsia e derivados, bungavília/ bunganvílea/ bougainvíllea).»
Por seu lado, a Nota Explicativa, documento associado à publicação e aplicação do AO 90 em Portugal, reconhece que «existe um razoável número de palavras do léxico português iniciado por [k, w e y]» e «[n]os países africanos de língua oficial portuguesa existem muitas palavras que se escrevem com aquelas letras». No entanto, igualmente aí se sublinha que se mantiveram «as regras já fixadas anteriormente, quanto ao seu uso restritivo, pois existem outros grafemas com o mesmo valor fónico daqueles», com uma última observação: «Se, de facto, se abolisse o uso restritivo daquelas letras, introduzir-se-ia no sistema ortográfico do português mais um factor de perturbação, ou seja, a possibilidade se representar, indiscriminadamente, por aquelas letras fonemas que já são transcritos por outras.»
Sendo assim, é claro que o nome próprio Zika, como topónimo, pode manter o k [cf. AO 90 Base I, 2 b)], independentemente da possibilidade (sempre aberta) de o aportuguesar (Zica), como sucedeu e continua a suceder noutros casos similares [cf. Sobre a forma do topónimo Dacar + Catmandu, em português + Cazaquistão + O aportuguesamento de topónimos romanos da Dalmácia + Aportuguesamento de vários topónimos estrangeiros + Aportuguesamento de topónimos espanhóis + Aportuguesamento de topónimos alemães + Aportuguesamento de topónimos russos + O aportuguesamento de niqab + O aportuguesamento de Fukushima (Fucoxima), Hiroshima (Hiroxima), Nagasaki (Nagasáqui), Kioto (Quioto), Osaka (Osaca), Tchad (Chade), etc.1].
Contudo, a grafia da sua conversão em nome comum – zika – pode encontrar alguma dificuldade de enquadramento entre os casos atrás indicados, porque não corresponde a uma palavra derivada por afixação como são frankliniano ou shakespeariano [cf. AO 90 Base I, 2 a) e 3], nem se inclui entre as «unidades de medida de curso internacional» [idem, Base I, 2 c)]; e, apesar de se tratar de um topónimo de África (a floresta de Zika, no Uganda), não é palavra proveniente de um país africano de língua oficial portuguesa. Poderá argumentar-se, ainda assim, que a conversão, ou seja, a mudança de classe ou subclasse gramaticais de uma palavra [p. ex., de Gillette, nome de marca de lâmina de barbear, forma-se gillette ou gilete, «lâmina de barbear»), é um tipo de derivação (tradicionalmente denominada «derivação imprópria») e, por isso, os preceitos ortográficos em apreço seriam aplicáveis diretamente à grafia zika, dispensando-a do itálico e dando-lhe toda a legitimidade no contexto ortográfico do português. Mas, sendo o AO 90 (com a ortografia anterior) omisso sobre a grafia deste tipo de nome comum, não seria descabido que os preceitos da Base I a respeito do k, do w e do y fossem complementados por critérios explícitos, que permitissem abranger os resultados lexicais destes casos de conversão ou derivação imprópria. Havendo, portanto, reservas sobre a legitimidade da forma zika no quadro da atual ortografia, a nota da Abertura de 1/02/2016 pretendeu, pois, sugerir apenas um aportuguesamento, zica, configurando um processo que é sempre possível, mesmo quando se fala de nomes próprios e comuns estrangeiros2.
1 Levantamento de José Mário Costa, a quem agradeço também a seguinte achega: «Outros estrangeirismos entrados na língua que foram «vestidos à portuguesa», como lhe chamava Manuel Rodrigues Lapa na sua Estilística da Língua Portuguesa: abysmal (abismal), addict (adicto), hallo (alô), alibi (álibi), ball (bola), beef (bife), cartoon (cartune), club (clube), elevator (elevador), cyclone (ciclone), hamburger (hambúrguer), leader (líder), poker (póquer), sandwich (sanduíche), record (recorde), supermarket (supermercado), vaseline (vaselina) vanguard (vanguarda) Shangri-la ( Xangrilá), shilling (xelim) – vide Alguns dos anglicismos usados em Portugal de José Pedro Machado, Sociedade da Língua Portuguesa, Série "Estudos e Conferências", Sep. do n.º 10 de 1985 de "Língua Portuguesa".»
N. E. – Atualização em 4/02/2016.