Pode escrever-se maltratado, que é particípio passado de maltratar, e mal tratado, com o advérbio mal a preceder o particípio passado de tratar. São formas semanticamente muito próximas, que se confundem, mas que, sintaticamente, apresentam pequenas diferenças.
A frase de Miguel Esteves Cardoso está construída na passiva e tem intencionalmente como predicador o verbo tratar (e não maltratar), sendo ser o verbo auxiliar1 de tratar (é-se tratado bem ou mal por alguém). Nesta frase, há marcadamente a intenção de fazer sobressair o modo/a forma ou maneira de tratamento a que alguém foi submetido/a, querendo evidenciar a diferença marcada pelos advérbios de modo bem e o mal. O advérbio de quantidade ou intensidade muito está a intensificar o verbo tratar, e não o verbo ser.
Relativamente à colocação dos advérbios, observa-se que «os advérbios de modo, de lugar e de localização temporal ocorr[em] tipicamente a seguir ao verbo pleno da frase, quer seja este o único verbo – cf. O Pedro ouviu bem/mal/atentamente as palavras do professor –, quer esteja integrado numa perífrase verbal – cf. O Pedro tinha ouvido bem/mal/atentamente as palavras do professor»1. Note-se, porém, que os advérbios de modo podem ocorrer, também, depois do verbo auxiliar, destacando-se o caso do «verbo auxiliar ser, [que,] em orações passivas, é o que melhor admite essa ordem»2 – cf. As palavras do professor foram bem/mal/atentamente ouvidas pelo Pedro. Sendo assim, tanto «é tratada muito mal» como «é muito mal tratada» são sequências equivalentes e corretas3.
Quanto a maltratado, trata-se do particípio passado do verbo maltratar e pode ocorrer também como adjetivo (participial). Importa recordar que «tanto particípios como adjetivos podem ocorrer com função atributiva e em orações copulativas em particular com os verbos ficar e estar. Nesses contextos, os particípios adquirem propriedades semânticas e sintáticas que os tornam gramaticalmente semelhantes aos adjetivos»3. Por exemplo: Com o passar dos anos, ela está/ficou maltratada.
1 O verbo ser ocorre aqui como verbo auxiliar, ou seja, não é o predicador da oração, qualidade atribuída aos verbos plenos, que «veiculam um sentido descritivo e são responsáveis pela seleção dos argumentos da oração, pela sua classe sintagmática, pela sua função gramatical e pelo seu valor semântico […]» (Eduardo Paiva Raposo (coord.), Gramática do Português, vol. II, Lisboa, Galouste Gulbenkian, 2013, p. 1222). Enquanto verbo auxiliar, o verbo ser (com o verbo seguinte no particípio passado) é designado como auxiliar passivo, «termo adotado da terminologia gramatical anglo-saxónica» (idem). Na frase em questão, o verbo ser também não é um verbo copulativo ou de cópula, «que estabelece a ligação entre um sujeito e um constituinte não verbal» (idem, p. 1327), e não está, assim, «ligado ao seu significado existencial básico», o do «uso do verbo ser como verbo de cópula para marcar a atribuição de propriedades estáveis aos indivíduo» (idem, p. 1330).
2 Idem, p.. 1601. Tratando do caso particular do advérbio mal (tal como sucede com o advérbio bem) em posição pré-verbal, a Gramática do Português esclarece que «frequentemente, o advérbio mal introduz um juízo do falante, de natureza modal deôntica ou de necessidade externa sobre aquilo que deveria realmente acontecer.» (idem, pp. 1656-1657).
3 Idem, p. 1476.