Em Portugal, parece ter maior tradição a forma «boa nova», sem hífen, mas, como observa o consulente, a grafia boa-nova tem também registos dicionarísticos que são bem anteriores ao Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90).
Na verdade, a história da hifenização de«boa nova»/boa-nova não tem que ver diretamente com o AO 90, porque este não afeta a grafia dos compostos de substantivo + adjetivo e adjetivo + substantivo, conforme se pode confirmar pela leitura da Base XV:
«Emprega-se o hífen nas palavras compostas por justaposição que não contêm formas de ligação e cujos elementos, de natureza nominal, adjetival, numeral ou verbal, constituem uma unidade sintagmática e semântica e mantêm acento próprio, podendo dar-se o caso de o primeiro elemento estar reduzido: ano-luz, arcebispo-bispo, arco-íris, decreto-lei, és-sueste, médico-cirurgião, rainha-cláudia, tenente-coronel, tio-avô, turma-piloto; alcaide-mor, amor-perfeito, guarda-noturno, mato-grossense, norte-americano, porto-alegrense, sul-africano; afro-asiático, afro-luso-brasileiro, azul-escuro, luso-brasileiro, primeiro-ministro, primeiro-sargento, primo-infeção, segunda-feira; conta-gotas, finca-pé, guarda-chuva.»
Este preceito restringe o âmbito de aplicação do hífen do disposto na Base XXVIII das Bases Analíticas da Convenção Ortográfica de 1945 (o chamado Acordo Ortográfico de 1945 – daqui em diante AO 45), mas, a respeito de compostos sem elementos de ligação, não introduz alterações. Leia-se a Base XXVIII:
«Emprega-se o hífen nos compostos em que entram, foneticamente distintos (e, portanto, com acentos gráficos, se os têm à parte), dois ou mais substantivos, ligados ou não por preposição ou outro elemento, um substantivo e um adjectivo, um adjectivo e um substantivo, dois adjectivos ou um adjectivo e um substantivo com valor adjectivo, uma forma verbal e um substantivo, duas formas verbais, ou ainda outras combinações de palavras, e em que o conjunto dos elementos, mantida a noção da composição, forma um sentido único ou uma aderência de sentidos. Exemplos: água-de-colónia, arco-da-velha, bispo-conde, brincos-de-princesa, cor-de-rosa (adjectivo e substantivo invariável), decreto-lei, erva-de-santa-maria, médico-cirurgião, rainha-cláudia, rosa-do-japão, tio-avô; alcaide-mor, amor-perfeito, cabra-cega, criado-mudo, cristão-novo, fogo-fátuo, guarda-nocturno, homem-bom, lugar-comum, obra-prima, sangue-frio; alto-relevo, baixo-relevo, belas-letras, boa-nova (insecto), grande-oficial, grão-duque, má-criação, primeiro-ministro, primeiro-sargento, quota-parte, rico-homem, segunda-feira, segundo-sargento; amarelo-claro, azul-escuro, azul-ferrete, azul-topázio, castanho-escuro, verde-claro, verde-esmeralda, verde-gaio, verde-negro, verde-rubro; conta-gotas, deita-gatos, finca-pé, guarda-chuva, pára-quedas, porta-bandeira, quebra-luz, torna-viagem, troca-tintas; puxa-puxa, ruge-ruge; assim-assim (advérbio de modo), bem-me-quer, bem-te-vi, chove-não-molha, diz-que-diz-que, mais-que-perfeito, maria-já-é-dia, menos-mal (=«sofrivelmente»), menos-mau (=«sofrível»). [...]»
Não se julgue, porém, que qualquer associação de substantivo e adjetivo tem forçosamente de exibir hífen: o que os normativos citados assinalam é que tais sequências vocabulares têm hífen se «constituem uma unidade sintagmática e semântica e mantêm acento próprio» (AO 90), ou seja, se «o conjunto dos elementos, mantida a noção da composição, forma um sentido único ou uma aderência de sentidos» (Convenção de 45).
Ora, é justamente desta definição de composto que decorre o problema ortográfico dos compostos de substantivo e adjetivo (ou vice-versa) – que não é de agora. Na verdade, não é fácil definir o momento em que uma sequência deste tipo deixa de ser um sintagma que preserva a sua composicionalidade para passar a constituir um todo, uma «unidade semântica» ou a marcar «um sentido único». Parece ser este, portanto, o caso de boa-nova/«boa nova», que, no mundo de língua portuguesa e nos últimos 70 anos, tem tido estas duas variantes. Por tudo isto, recorde-se um pouco da história ortográfica da palavra/expressão:
– O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1940 não regista boa-nova, donde se infere que, à época, se deveria grafar «boa nova».
– Duas décadas depois, o Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), de Rebelo Gonçalves, registava boa-nova, não como sinónimo de «boa notícia», mas, sim, como denominação de uma espécie botânica, além de consignar «Boa Nova» como topónimo – o que permite supor que, pelo menos, em Portugal, há 50 anos, era correto escrever «boa nova», sem hífen.
– Contudo, nos anos 70, José Pedro Machado registava no seu dicionário (Grande Dicionário...) a forma boa-nova, a que atribui a aceção de «boa notícia» e «notícia da salvação do mundo».
– Na atualidade, no contexto da aplicação do AO 90, temos os vocabulários ortográficos atualizados a registar boa-nova, mas sem indicação de significado nem de uso, o que pode levar a crer que «boa nova», no sentido de «boa notícia», se hifeniza – conclusão que não me parece assim tão evidente, dada a história que acabo de sintetizar.
Refira-se que, no Brasil, a 1.ª edição (2001) do Dicionário Houaiss apresenta boa-nova em três aceções: «notícia feliz; novidade fortunosa», «notícia da salvação do mundo por Jesus Cristo; Evangelho» e «designação dada a qualquer borboleta branca que entre em casa, à qual se atribui o anúncio de boas notícias».
Em conclusão, será talvez necessário que os vocabulários ortográficos existentes, em próximas edições – no contexto de qualquer convenção ortográfica seja ela passada, presente ou futura –, registem claramente o que querem dizer com boa-nova. Enquanto isso não acontece, «boa nova» aparece como forma legítima, com tradição e como sinónimo de «boa notícia» (até porque nova é, como se sabe, sinónimo de notícia); diga-se, aliás, que não é claro que a sequência de vocábulos «boa nova» tenha adquirido significado global próprio e diferenciado de «nova que é boa, feliz» para exibir hífen (já como sinónimo de Evangelho, o hífen terá muito mais cabimento, ainda que também fosse possível recorrer às maiúscula iniciais: «Boa Nova»). Boa-nova é também possível, mas, em Portugal, tem história mais recente, convergente com as especificidades ortográficas do português brasileiro.