«(...) A solastalgia é um sentimento de perda para o qual já não há consolação. Designa a perda dos ambientes naturais provocada pelo aquecimento climático e todas as suas implicações e consequências. (...)»
Se é na linguagem e com a linguagem que conseguimos pensar, então talvez a nossa época, que andou durante muito tempo desprovida de palavras que nomeassem uma sensibilidade epocal e um modo de existência fundamental, como se fosse indefinível nos seus hieróglifos, tenha despertado através de uma palavra, um neologismo que surgiu há pouco tempo, mas começa a fazer um percurso triunfante: solastalgia.
A palavra tem na sua formação uma palavra latina e outra grega: solari, em latim é o infinitivo de um verbo depoente (isto é, um verbo que se conjuga na voz passiva mas tem um significado que é próprio da voz activa), que significa confortar, consolar (uma palavra onde reconhecemos o mesmo étimo) e algia tem o étimo grego para “dor”, “sofrimento”. Solacium é um substantivo da mesma família e ouvimo-la no espaço público quando, há dois anos, o Papa Francisco ordenou que fosse inserido um «Solacium Migrantium», conforto ou consolação dos emigrantes, como invocação na ladainha da Virgem Maria. Uma palavra formada de maneira semelhante é “nostalgia” (nostos + algia), isto é, o mal du pays que impele ao regresso, a afecção do regresso a casa (Joyce chamou Nostos à última parte do Ulisses, em que Bloom, ao fim da sua jornada, regressa a casa).
O neologismo foi criado por um professor de Filosofia na Universidade de Newcastle (Austrália), Glenn A. Albrecht, de 64 anos, autor modesto, mas agora coroado pela sua invenção lexical, revelada em 2019 num livro que se chama Earth Emotions. New Words for a New World, repleto de outros neologismos que não tiveram a fortuna de «solastalgia». Pelo contrário, o livro já mereceu recensões muito críticas por causa do entusiasmo com que o seu autor vai debitando neologismos que não têm, nem de perto nem de longe, a pertinência e o alcance analítico e conceptual de «solastalgia».
Com esse nome, Albrecht quis nomear «a experiência vivida de uma mudança ambiental dolorosa, angustiante», não uma experiência pontual, mas uma experiência crónica. Albrecht sabe do que fala porque mora em Hunter Valley, a norte de Sidney, numa paisagem devastada por fortes incêndios que se mantiveram activos durante meses. E foi para dar um nome ao sentimento, ao estado de alma, às tonalidades emotivas da sua comunidade, que Albrecht propôs o nome de «solastalgia» e o universalizou no seu valor semântico. Eis a nova palavra de um novo mundo e de um novo tempo – o tempo do Antropoceno – para designar a experiência emotiva, o sentimento de medo e angústia provocados pelas alterações climáticas e ambientais, a que vulgarmente, num registo mais psicológico, se dá o nome de eco-ansiedade.
A solastalgia, na proposta de Albrecht e no uso cada vez mais frequente a que a palavra tem sido sujeita, elabora conceptualmente uma situação epocal, define os traços específicos da situação histórica contemporânea. Poderíamos talvez chamar-lhe uma síndrome, tal como os ecologistas chamam, numa expressão inglesa de difícil tradução, shifting baseline syndrome (SBS)[1], para designar as mudanças graduais no ambiente natural, de tal modo que se vai perdendo a memória e o conhecimento do que existia no passado e vão baixando drasticamente os parâmetros do que se deveria esperar e desejar desse ambiente a cuja degradação nos fomos habituando progressivamente.
A solastalgia é um sentimento de perda para o qual já não há consolação. Designa a perda dos ambientes naturais provocada pelo aquecimento climático e todas as suas implicações e consequências, assim como a perda a que os cidadãos são submetidos por causa da transformação das cidades e do desenvolvimento urbano. Lembremos mais uma vez que a solastalgia, enquanto condição crónica, iniciou o seu percurso triunfante num livro chamado Earh Emotions, que é um exemplo eloquente de uma tendência actual para dotar a Terra de vontades, atitudes e sentimentos que obviamente só lhe são atribuídos por indevida e alucinada projecção humana, sinal de que continuamos a “construí-la”, mesmo quando diagnosticamos os malefícios do nosso construtivismo.
Entretanto, depois de um curto período e em que parecíamos ter conquistado o tempo e alcançado a felicidade de sermos sobreviventes das épocas históricas que estavam constantemente a suceder-se e a actualizar-se, eis que a palavra solastalgia nos vem lembrar que estamos mergulhados até ao pescoço numa época que nos oferece muita história e pouco tempo.
[1 N. E. (30/07/2022) – De facto, a expressão não encontra ainda equivalente em português, pelo menos a avaliar por uma consulta em páginas da Internet. Uma tradução possível é «síndrome de amnésia ecológica ou ambiental», tendo em conta que shifting baseline aparece traduzido em francês como amnésie écologique, amnésie générationelle ou amnésie environnementale, isto é, «amnésia ecológica, geracional ou ambiental» (cf. "Amnésie écologique", na versão francesa da Wikipédia, consultada em 30/07/2022).]
Crónica incluída no jornal Público do dia 29 de julho de 2022. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.