«(...) Uma das questões que torna esta glotofobia mais irritante é que detrás dela existe uma discriminação, a ideia de que há sotaques superiores, sotaques classistas, elitistas, há sotaques mais inteligentes e sotaques mais burros, de que se deve ter vergonha e anular. (...)»
Já estagiário do Público, num curso do Cenjor (Centro Protocolar de Formação Profissional) para jornalistas promovido pelo jornal em 1989, para que pelo menos soubéssemos trabalhar com um computador (era o primeiro jornal a utilizá-lo em rede) —, um professor deu-me dois conselhos: usar roupas mais discretas, mas, acima de tudo, tinha de perder o sotaque alentejano. Se a roupa me retirava credibilidade (para o padrão de jornalista-colete anos 80), meter-lhe um sotaque ferreirense era coisa para explodir o cérebro do interlocutor. Tive oportunidade de comprovar que tinha razão, e o meu alentejano em sotaque foi-se esvaindo (ligar a um diretor-geral: «Sabe que está acusado de corrupção?» Você é alentejano, não é?» «Sou». «Ah! Ah! Ah! Ah! E sobre a corrupção?»), mas sempre achei curiosíssimo que a simples “descoberta” do meu sotaque remetesse para um estado de gargalhada — o mesmo acontecendo no Brasil, como se de repente se abrisse na cabeça do outro uma comporta com todas as anedotas de alentejanos, ou portugueses, com todo o ADN de preconceitos que elas carregam.
Há dias, mais entusiasmado na televisão, terei alentejanado o meu sotaque e houve quem lesse nisso um “descuido”. Como se tivesse sido incapaz de manter a capa do lisboeta que cobre o alentejano. Dias depois, li [em] El País um artigo sobre glotofobia — a discriminação por causa do sotaque (é mais complicado porque os linguistas complicam, e se mete sexo e raça e releituras históricas, em 2022, ainda complica mais). Mas há uma particularidade que acerta na muche: é o último preconceito, surpreendentemente entre pessoas que se dizem de mente muito aberta e tolerante. E é verdade. Podem investigar por glotofobia, também varia se for glottophobia, mas os anglo-saxões chamam-lhe discriminação linguística. Embora os linguistas compliquem. E se passarem na bimby woke, tudo alucina.
Por defeito profissional, sou observador. Reparo como há uma reatividade quase impulsiva (e inconsciente) quando deparamos com sotaques, quando somos apresentados ou colocados em contacto com alguém com sotaque diferente do nosso. Primeiro, deixem-me esclarecer que todos temos sotaque, mas do nosso ponto de vista o sotaque é o outro. O brasileiro acha que o português tem sotaque e vice-versa. Mas, dizia, há muita gente que não resiste, na primeira abordagem que tem com uma pessoa com um sotaque diferente do seu, não só a identificar o sotaque como a imitá-lo. É uma grosseria de que não se dão conta: «É brasileira? Tudo legal?» Alentejano? «Atãão tá booom? Adoro o Alentejo.»
Tudo isto pode parecer simpatia, mas para quem ouve não passa de um momento rude — em que se retira da pessoa apenas o sotaque, remetendo-o para um espaço geográfico e fazendo uma imitação patusca. No caso do sotaque alentejano, confundem-no com o sotaque cigano. Nem sequer é uma questão: são muito diferentes. Para se ter uma ideia, ali na minha zona, três localidades separadas por 20 quilómetros (Ferreira, Aljustrel e Beja) têm três sotaques diferentes, e isto aplica-se ao país todo. É uma riqueza imensa. E vou passar ao lado da pirraça lisboeta-portuense, em que o lisboeta começa logo por dizer que o Porto é o norte (o que no mínimo demonstra uma falta de perceção geográfica do país) e o portuense mistura um linguajar lisboeta fadista com um cascalense-tia de um imaginário jet set. Mas na base da peleja, há bola. E nisso, não me meto.
Uma das questões que torna esta glotofobia mais irritante é que detrás dela existe uma discriminação, a ideia de que há sotaques superiores, sotaques classistas, elitistas, há sotaques mais inteligentes e sotaques mais burros, de que se deve ter vergonha e anular. E isso não é uma característica portuguesa. Os ingleses, a democracia de castas mais apreciada no mundo, têm um sotaque para cada condição social, e o seu imperialismo foi disseminado em inglês, mas sem miscigenação de sotaques. Não “cafrealizaram” o sotaque como os tugas. Nas colónias portuguesas, os africanos assimilados ascendiam também ao sotaque “neutro”, “educado”, da metrópole (neste caso, Lisboa). Em muitos locais por esse mundo fora, as potências colonizadas ou mesmo os governos temeram línguas regionais e impuseram a proibição do seu uso (o basco, o mirandês) — pelo que hoje se fala em linguicídio, termo que acho horrível. Mas isto, por vezes, dá uma volta tal que em França, em 2020, o parlamento passou uma lei que prevê multas até €45 mil para quem goze com sotaques regionais. Um dos três votos contra foi de um deputado da Córsega, que disse que não queria passar a ser tratado como uma minoria protegida.
Nas novelas portuguesas, nas passadas em espaço rural, só o pessoal braçal é que tem uma espécie de sotaque; já os galãs e divas, mesmo nascidos e criados no campo, falam o português eixo Lisboa-Coimbra. Em nenhuma ficção (posso estar a ser injusto) há um cirurgião a falar alentejano cerrado, porque isso iria retirar credibilidade e fazer ruído. Já as novelas brasileiras conseguiram trazer os sotaques para toda a narrativa. Mas acredito que só alguns dos muitos sotaques do Brasil poderão ter musicalidade para servir a intriga e o amor, o bom e o vilão. Para cá, e para começar a desfazer este tabu, proponho uma novela com gémeas separadas, uma com sotaque algarvio e a outra com sotaque açoriano. É um começo.