« (...) A delegação portuguesa aos Jogos Olímpicos de Tóquio teve gente com muitos e variados percursos de vida, muitas histórias, ligações diversas com Portugal e com a língua portuguesa. (...)»
Um sotaque é uma forma de pronunciar particular de um indivíduo, ou dos falantes de determinada localidade, região ou país. O sotaque permite identificar com relativa facilidade, em quem fala, o local onde reside, ou o seu estrato socioeconómico, a sua etnia, ou até a sua classe social. Quando a língua que fala não é, para o indivíduo, a sua língua materna, é possível também identificar o lugar de onde provém, pelas influências da sua língua materna que transparecem na sua fala, que se manifestam na forma como pronuncia determinados sons, no seu sotaque. Além dos sons propriamente ditos, o sotaque dos indivíduos manifesta-se também na prosódia, ou seja, na entoação dada ao discurso, às palavras e às frases, no ritmo, em suma, na musicalidade da própria língua. Acontece por vezes ouvirmos alguém falar uma determinada língua com toda a correção (pronúncia dos sons, escolha das palavras, construção das frases, organização e eficácia do discurso), mas termos a sensação de ela ser falada mecanicamente, de continuar "a ser estrangeira", porque lhe falta a melodia própria da língua, melodia que é parte integrante dela.
O sotaque é sempre do outro (nunca do próprio), é a marca da sua diferença, da sua alteridade. Ninguém tem sotaque, ou melhor, ninguém ouve o seu próprio sotaque; é sempre o outro que o tem. Lembro sempre um adolescente do meu tempo, tomarense de gema, comentar, com o seu inconfundível sotaque ribatejano: «Eles lá nos Açores têm muito sotaque, nã ei?». Da sua perspetiva, este rapaz não tinha sotaque; só os açorianos é que tinham.
O certo é que todos temos um sotaque particular, até os lisboetas das classes mais letradas quando usam a língua em registo formal, ou seja, quando se exprimem em português-padrão. Todos temos um sotaque, mas precisamos de um outro que o ouça e no-lo identifique.
Ontem terminaram os Jogos Olímpicos de 2020, em Tóquio, e Portugal obteve os melhores resultados de sempre: ouro no triplo salto masculino, prata no triplo salto feminino, bronze no judo e [na canoagem], e ainda 11 diplomas nas modalidades lançamento do peso, lançamento do disco, ciclismo, canoagem, vela, marcha, dressage, skateboard e surf.
A delegação portuguesa aos Jogos de Tóquio teve gente com muitos e variados percursos de vida, muitas histórias, ligações diversas com Portugal e com a língua portuguesa. A nossa delegação foi bem representativa do povo que fomos e somos: um povo que descobriu e colonizou outras regiões e outros povos, que se mestiçou, que espalhou a sua língua pelos quatro cantos do mundo e igualmente a mestiçou, cuja história teve pontos altos e outros de que não se orgulha, que foi forçado a emigrar em busca de vida digna e lá fora teve filhos, netos e bisnetos. Foi também a delegação representativa do povo que acolhe e integra aqueles que vêm em busca de refúgio, de abrigo.
Em Tóquio falou-se português, com muitos sotaques: o do Pichardo e o do Pimenta, o dos irmãos Sousa, o da Mamona e o da Liliana Cá, o da Rochele e o da Auriol Dongmo, o da Yolanda Hopkins, o da Fu Yu e o da Jieni Shao, o da Tamila Holub e o do Anri Egutidze. E o dos Pedros, Paulos, Jões, Marcos, Marias, Catarinas, Telmas, Joanas, Gustavos. E até o da jovem japonesa que em português explicou ao repórter da RTP porque os japoneses gostam tanto de assistir a maratonas.
Foi lindo ouvir falar português em Tóquio. Com muitos sotaques, pois claro!
Artigo da professora Margarita Correia, transcrito, com a devida vénia, do Diário de Notícias, com data de 9 de agosto de 2021.