« (...) Os parênteses esclarecem ou explicam melhor certas ideias e imagens secretas, porque as concretizam (exemplificando-as). Ou, pelo contrário, porque nos arrastam no turbilhão dos pensamentos imperfeitos e das metamorfoses da consciência. (...)»
Há uma marcada antipatia pelos parênteses. O suposto bom gosto literário afirma que devem ser evitados, porque dificultam a compreensão – contrariamente às frases curtas, simples e directas, que dão vivacidade e fluência à leitura.
Utilizados no meio e no fim de uma oração, e muito raramente no início de um parágrafo, os parênteses interrompem as frases com apartes, interpelações, sugestões, explicações, definições, ideias subsidiárias ou alternativas, citações bibliográficas, números de páginas, comentários, ressalvas, siglas, etc.
Tidos como próteses de frases, ou cápsulas de informação, criam socalcos no encadeamento das ideias, fazendo-as entrechocar.
São um lugar estreito que contém, esconde ou tranca pensamentos suplementares, acessórios ou não essenciais. E que, por isso, nos desviam dos assuntos e lhes dão um carácter desordenado, devendo ser substituídos por duas discretas vírgulas, por travessões ou mesmo por frases autónomas.
Mark Twain detestava-os, considerava-os mesmo uma das doenças da literatura norte-americana. Segundo ele, «os parênteses na literatura e na odontologia são de mau gosto. Uma expressão entre parênteses é como um dentista que agarra num dente e começa a contar uma anedota entediante, antes do puxão doloroso».
Eu, por mim, arrisco-me a confessar: sou um admirador dos parênteses. A enumeração caótica, as combinações improváveis e as conversas com focos diversos, possibilitadas pelos parênteses no interior das frases, lembram-me a mistura confusa e alegre das casas amontoadas de parentes, amigos e vizinhos.
Mas os parênteses, ao invés de desorganizarem as ideias, podem ajudar a organizá-las de um outro modo, que escapa à imposição de uma escrita ordeira e civilizada, assente na ficção de que é possível reconstituir o sentido do mundo (eliminando tudo o que lhe é estranho ou difícil de explicar).
Os parênteses, justiça lhes seja feita, opõem-se aos discursos encerrados na ordem e na coerência de sistemas lineares e contínuos, que nos asfixiam com as vulgaridades obrigatórias sobre o divino e o humano, impedindo toda a extravasão.
Os parênteses remetem para a multitude de vozes que nos cercam; sugerem que as ideias estão em permanente movimento de recomposição e desarrumam a nossa maneira cómoda de pensar.
Além disso, os parênteses operam diversas transições no tempo, mostram que os textos podem ter diversos níveis de leitura. Por outro lado, recordam-nos que há afirmações que devem ser lidas baixando um pouco a voz, porque semanticamente e sintaticamente isoladas das que ficaram no exterior dos parênteses. Essa diferença de entoação, como acontece de resto com algumas reticências, estabelece uma proximidade ou cumplicidade entre o autor e o leitor.
Recurso subjectivo de primeira magnitude
Dostoiévski considerava os parênteses e elipses um recurso subjectivo de primeira magnitude. Em obras como Crime e Castigo ou Memórias do Subterrâneo, em que encontramos parênteses e parênteses dentro de parênteses, servem para distinguir os diálogos do autor consigo próprio e, simultaneamente, marcam a sua distância em relação à história que está a contar.
Também Virginia Woolf se aproveitou das potencialidades libertadoras dos parênteses. Nos romances Rumo ao Farol ou O Quarto de Jacob, os parênteses denotam a simultaneidade de experiências ocorridas em ambientes físicos diferentes, assinalam mudanças no pensamento das personagens (e acrescentam-lhes outros factos) ou incluem simplesmente comentários da própria narradora.
Quando transmitem uma contradição entre os pensamentos conscientes e inconscientes dos narradores ou das personagens de ficção, como acontece nos livros de Woolf, os parênteses dão um cunho mais emotivo ou angustiante à leitura.
Porém, nenhum outro escritor, como William Faulkner, prodigalizou tanta afeição aos parênteses. Faulkner fez frente à gramática inglesa e subverteu-lhe as regras, escrevendo frases que se estendem durante quatro páginas, com pouca pontuação. Mas, em contrapartida, com muitos parênteses depois de parênteses e parênteses contendo eles próprios um ou mais parênteses, como caixas que contêm várias caixas, umas dentro das outras.
Livros como O Som e a Fúria e Absalão, Absalão! acumulam parêntesis com o intuito de prolongar a acção e criar suspense no leitor, para demarcar os monólogos interiores das personagens (o fluxo da sua consciência), ou para condensar o tempo, fazendo com que o passado actue sobre o presente como um fardo pesado, mais pesado que a cruz sobre os ombros de Cristo...
Roberto Bolaño atribuiu dignidade literária aos parênteses dando às colunas que escrevia para o jornal chileno Las Últimas Noticias o nome genérico de “Entre Parênteses” (reunidas depois num livro com o mesmo título, Entre Paréntesis. Ensayos, articulos y discursos, 1998-2003).
Em Portugal, Lobo Antunes põe algumas personagens a falar através de frases dentro de parênteses, para que as vozes se justaponham e misturem com as que estão fora deles. José Saramago, pelo contrário, condenou-os praticamente à inexistência nos romances, excepto nos diários, os Cadernos de Lanzarote, onde brilham aqui e ali.
Os parênteses podem ainda ser, digamos assim (por falta de melhor termo), o termómetro da honestidade, do rigor e da humildade intelectual dos escritores.
Por exemplo, destacam certas informações técnicas, como as referências bibliográficas que nos serviram de inspiração (seguidas do ano de edição da obra consultada e do número da página).
O rigor intelectual manda também que os cortes no início, no meio ou no fim das citações sejam sinalizados através de parênteses curvos com reticências no interior; que os vocábulos ou ideias indispensáveis à compreensão das citações de outrem apareçam entre parênteses rectos; e que se houver algo errado ou estranho no discurso original (um erro de ortografia ou de concordância, por exemplo), se use a expressão latina sic dentro de parênteses.
O cubano Guillermo Cabrera Infante, em Exorcismos de Esti(l)o, confessa-se obcecado pelos parênteses que incluem as datas de nascimento de escritores famosos que ainda não morreram, e apresenta como exemplos Raymond Chandler (1888 - ), Ernest Hemingway (1899 - ) ou Pablo Neruda (1904 - ).
Aqui, os parênteses tanto podem ser um poço que espera, ganancioso, o registo da data da morte (e o hífen o trampolim ou a prancha de onde se dá o salto definitivo para o negro esquecimento); ou uma boca voraz que se abre para ligar a vida, indestrinçavelmente, à evidência da morte.
Os parênteses esclarecem ou explicam melhor certas ideias e imagens secretas, porque as concretizam (exemplificando-as). Ou, pelo contrário, porque nos arrastam no turbilhão dos pensamentos imperfeitos e das metamorfoses da consciência.
Sucedeu-me muitas vezes ficar maravilhado com as deduções que os parênteses sabem tirar quando nos assaltam, a meio ou no fim das frases, propondo-lhes novos caminhos, que antes ninguém pensou seguir.
Não tenho nada contra o conforto das frases curtas e directas. Mas, como na vida, é preciso saber interrompê-lo com pequenos sobressaltos.
Artigo publicado na revista Sábado do dia 12 de agosto de 2021, escrito segundo a norma ortográfica de 1945.