Conhecer e compreender uma língua é uma tarefa árdua e nem sempre bem-sucedida. Até mesmo no caso do domínio da língua materna, muitos são os falantes que se deparam com dificuldades em perceber e utilizar de forma correta determinadas estruturas, sobretudo as da variante culta. Segundo João Andrade Peres e Telmo Móia, em Áreas críticas da Língua Portuguesa, o erro linguístico ou desvio «é normalmente fruto da falta de familiaridade com os monumentos escritos da língua ou da ausência de um distanciamento em relação a ela que permita a compreensão da sua orgânica e das imensas possibilidades que oferece» (pág. 41).
É, pois, comum encontrar-se no discurso quotidiano de muitos falantes a utilização incorreta de certas estruturas ou expressões que, em determinados casos, são erros habituais. As questões que diariamente chegam ao consultório do Ciberdúvidas são o reflexo das dificuldades e desafios com que os falantes de português se deparam. Todavia, se há dúvidas que são fruto das complexidades e dinâmicas da língua, outras são, ao invés, espelho do desconhecimento das suas regras.
Tomando como ponto de partida algumas das dúvidas mais frequentes dos falantes da língua portuguesa, a equipa do Ciberdúvidas selecionou dez estruturas que, muitas vezes, são usadas de forma incorreta, descuidada e submeteu-as à votação do público que segue o projeto nas redes socias, por forma a eleger a Dúvida do Ano de 2023. O desafio foi lançado em 19 de dezembro de 2023, tendo estado a votação aberta até 10 de janeiro de 2024.
As questões de português nomeadas para a Dúvida do Ano de 2023 foram:
1. «A população mostrou pouca aderência à manifestação» ou «A população mostrou pouca adesão à manifestação»;
2. «Eis os livros que gosto mais» ou «Eis os livros de que gosto mais»;
3. «Terminei o trabalho há pouco tempo» ou «Terminei o trabalho à pouco tempo»;
4. «Não comas se não queres» ou «Não comas senão queres»;
5. «Simultaneidade» ou «Simultaniedade»;
6. «Isto não tem a ver contigo» ou «Isto não tem haver contigo»;
7. «Houve muitos acidentes» ou «Houveram muitos acidente»;
8. «Vou ao encontro desta ideia» ou «Vou de encontro a esta ideia»;
10. «Trás o livro» ou «traz o livro».
Na base da seleção destas dúvidas estiveram dois fatores: identificar algumas estruturas que frequentemente são usadas de forma incorreta e demonstrar que estas incorreções surgem em diferentes registos e nenhum falante é imune a elas.
A Dúvida do Ano de 2023, escolhida por 24% dos votos, é «Eis os livros que gosto mais» ou «Eis os livros de que gosto mais». Esta é uma incorreção que ocorre com muita frequência tanto a nível oral como escrito e em diferentes registos, do mais informal ao mais formal. A estrutura correta é «Eis os livros de que gosto mais», uma vez que a preposição de deve ser colocada antes do pronome relativo que, porque a oração a que pertence este pronome tem como núcleo o verbo gostar, que rege a preposição de. Ora, na frase «Eis o livro de que gosto mais», o pronome que está a substituir livro na oração que introduz, sendo que esta oração era na sua origem algo como «eu gosto do livro».
O segundo lugar do pódio desta votação é ocupado pela dúvida «Houve muitos acidentes» ou «Houveram muitos acidentes», escolhida por 18% dos votos. A concordância entre o verbo haver e os restantes constituintes da frase é também uma questão comum para muitos falantes. Recordemos que, quando o verbo haver tem a aceção de «existir», só pode ser usado na terceira pessoa do singular, uma vez que é impessoal, o que significa que não seleciona um sujeito, mas pode selecionar complementos. Portanto, o correto é dizer-se «Houve muitos acidentes».
Por fim, para completar o pódio, a terceira dúvida mais votada foi «Terminei o trabalho há pouco tempo» ou «Terminei o trabalho à pouco tempo». A dificuldade está mais uma vez relacionada com o uso do verbo haver. Quando se pretende exprimir informação relacionada com o tempo decorrido, deve-se usar o verbo haver. Por isso, neste caso, a frase correta é «Terminei o trabalho há pouco tempo».
Com a realização desta votação, a equipa do Ciberdúvidas espera ter contribuído para o esclarecimento e melhor entendimento de algumas das dúvidas mais típicas da língua portuguesa, deixando a certeza de que esta será uma rubrica a manter no próximo ano, com novas dúvidas dos portugueses, na eleição da Dúvida do Ano de 2024. Até lá, resta-nos desejar aos nossos leitores que este seja um ano feliz e com bom português!