Agradeço, caro consulente, as palavras elogiosas que me dirige. Esforçar-me-ei para que esta minha resposta, se não conseguir anular os seus mas, ao menos não dissolva a opinião, benevolente, que a meu respeito formulou.
A justificação para esta resposta, que não solicita, advém de vários pressupostos:
– A língua só existe porque há falantes que a usam e a interpretam e que fazem dela um organismo vivo em constante evolução;
– O facto de eu não encontrar determinado sentido numa expressão não quer dizer que ele não exista, mas, tão-somente, que eu não sou sensível a determinadas variações que a língua permite;
– O facto de eu não conhecer uma expressão não significa, igualmente, que ela não exista, corrobora apenas a certeza de que não conheço todas as potencialidades da língua que falo;
– A alteração de uma estrutura acontece ao longo do tempo e deixa marcas que permitem identificar a sua evolução e reconstituir o seu percurso.
Apresentados os pressupostos, vou dividir a minha exposição em duas partes: comentarei, em primeiro lugar, algumas das suas observações; seguidamente apresentarei os resultados que obtive a partir da análise de alguns instrumentos de trabalho e farei uma síntese global.
A interpretação que, acerca do verbo ver, elaborei na resposta anterior nada tem de “impressionista”. Ao elaborá-la, tinha bem presentes na minha memória as recomendações dos meus professores de latim – disciplina que recentemente aprofundei – que, na hora de traduzirmos os textos latinos do período clássico, se não cansavam de nos lembrar que os primeiros significados que surgem no dicionário não são, necessariamente, os mais utilizados, porque a sua apresentação é, tanto quanto possível, cronológica, isto é, os primeiros significados do dicionário são os mais antigos e, talvez por isso, se não adeqúem já à realidade descrita por textos escritos centenas de anos depois. Era preciso, pois, percorrer todos os sentidos possíveis e escolher o que melhor se adaptasse ao texto a traduzir. Esta recordação levou-me a refazer o percurso. Pegando no dicionário de Latim-Francês, de Gaffiot, Hachette, Paris, reli o que se dizia sobre o verbo videre (verbete: video, vidi, visum, ere) e, no ponto 7, pude ler: «A) voir avec les yeux de l’esprit, voir par la pensée, en imagination.»
Fazendo exercício semelhante, agora com um dicionário de língua portuguesa, por exemplo o Novo Aurélio do Séc. XXI, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, verifiquei que:
1.º São apontadas para ver 33 acepções diferentes, correspondendo a algumas variações de sentido;
2.º Embora em nenhuma delas se registe explicitamente o sentido relacionar, estar relacionado, muitas apresentam significados que a ele podem conduzir. Cito alguns: «6 reconhecer, compreender; 7 … perceber; … 10 deduzir, concluir; 11 imaginar; … 13 examinar, investigar; … 16 ponderar, considerar.»
Podemos ver, isto é, concluir, que ver nem sempre é só «ver».
Poderia fazer o mesmo para o verbo ter. Não o fiz na resposta anterior para me não tornar repetitiva. Não o vou fazer agora. Refiro apenas que o verbo ter, do latim tenere (tal como o tenir do francês, que mantém vivo o sentido do verbo latino) mudou de significado no português: de segurar, agarrar com força, passou a significar ter, possuir, conquistando, ao longo dos tempos, o lugar que no latim cabia a habere, em prejuízo do verbo haver, que tem vindo, ao longo da história da língua portuguesa, a perder sentidos (sobretudo a partir do século XVI). E se é verdade que o primeiro significado do verbo haver é, no dicionário, «ter», não é menos verdade que nenhum falante, para quem o português seja língua materna, se lembraria, hoje, de dizer, num grupo de amigos, a título informativo «Eu hei um carro novo»…
Gostaria apenas de acrescentar que os três verbos que estão em causa nesta análise, isto é, ver, haver e ter, têm os seus curricula vitae muito bem inscritos nos dicionários, sobretudo se tivermos oportunidade de percorrer os seus significados num dicionário de latim e depois num de português. O verbo ver, conservador, mantém toda a riqueza de significados que já o caracterizavam no latim, vindo a amealhar mais alguns ao longo dos tempos; haver, destronado no português pelo verbo ter, tem vindo a perder terreno e agora já nem enquanto impessoal tem o seu feudo garantido, pois os dicionários – obrigados pelo uso, diga-se – já começam a referir a utilização do verbo ter, impessoal, significando existir em frases como «Tem muitos carros no parque», que surge em vez de «Há muitos carros no parque»; mantém, no entanto, espaços seus; veja-se a diferença entre «Eu tenho de fazer» e «Eu hei-de fazer». O verbo ter é o grande vencedor desta corrida. Conquistador, enfraqueceu o domínio do verbo haver, além de ir conquistando sempre sentidos novos, não só como verbo utilizado enquanto tal, mas também como elemento de várias expressões idiomáticas em que ganha outros sentidos. E isso não acontece só com as expressões que são objecto de análise neste artigo. A título de curiosidade, no Novo Aurélio, o verbo ter tem 60 acepções diferentes e, no Dicionário de Expressões Populares de Guilherme Simões, D. Quixote, Lisboa, pude contar 464 expressões em que entra este verbo.
Com esta já longa exposição, espero ter demonstrado que:
1.º a forma como expliquei o sentido do verbo ver na expressão ter a ver com, e insisto em colocar a preposição com, não sofre de falta de método, obedece a um método característico, que permite tirar conclusões com algum grau de fiabilidade;
2.º o verbo ter, como o verbo ver, é usado – com o aval dos dicionários e a indispensável compreensão dos falantes – com significados globais diferentes do que lhe é mais comum.
3.º a expressão ter a que ver/com é só uma entre centenas em que o verbo ter não significa ter, mas outra coisa. Dou como exemplo «Ter pó a alguém», que significa odiar, detestar...
Passo de seguida à segunda parte da minha exposição, apresentando os resultados de alguma pesquisa efectuada, no sentido de verificar a existência de situações que comprovem a hipótese apresentada pelo consulente e que é, se bem entendi, que o verbo ver na expressão «Isto nada tem a ver com aquilo» é uma corruptela do verbo haver, que estaria nesta posição em vez de ter, por ser linguisticamente pouco adequado repetir o mesmo verbo em sequência tão curta. Assumindo que as alterações da língua deixam marcas nos textos, deduzo da exposição do consulente que ele defende que num dado momento se terá dito ter a/que ter; dizendo-se de seguida ter a/que haver, para não repetir o verbo ter e que numa fase posterior os falantes terão confundido ter a/que haver com ter a/que ver. Estas três expressões teriam o mesmo sentido, que, para o consulente, não é estar relacionado, relacionar.
Na pesquisa que efectuei procurei verificar:
1 Se existem expressões do tipo ter a/que ter, tentando analisar a possibilidade ou impossibilidade desta construção;
2 Que sentidos tem a expressão ter que/a haver;
3 Se a expressão ter a/que ver com, que parece distanciar-se de todas em que entra o verbo ter, é recente e quais os sentidos que veicula.
4 Se existe um sentido diferente entre ter a/ que ver e ter a/que ver com.
Para efectuar esta pesquisa utilizei quatro instrumentos diferentes:
1.º A Biblioteca Virtual dos Autores Portugueses, um conjunto de dois CD-ROM, editados pela Biblioteca Nacional e pelo Diário de Notícias, que contêm obras de autores portugueses desde a Idade Média até ao séc. XX. Estes CD permitem fazer pesquisas por palavra, que nos surge contextualizada numa obra específica ou na globalidade das obras que integram o conjunto. Utilizei esta ferramenta para efectuar uma pesquisa diacrónica, que me permitisse registar as alterações da expressão em estudo, isto é, ter a/que ver com, ao longo dos tempos.
2.º O corpus CETEMpúblico, composto por um milhão de palavras, extraído do jornal Público e disponível no endereço electrónico www.ac.dc.linguateca.pt/acesso. Neste corpus procurei identificar, numa perspectiva sincrónica, todas as possibilidades de co-ocorrência entre os verbos ter, ver e haver e os respectivos sentidos.
3.º O subcorpus do Corpus de Referência do Português Contemporâneo (CRPC), do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL), disponível neste endereço electrónico e composto por vários tipos de texto, correspondendo cada um a um subcorpus, e contendo um total de 4 646 737 palavras.
4.º O texto oral e o texto literário do Corpus de Referência do Português Contemporâneo (CRPC) numa pesquisa efectuada, a meu pedido, no próprio Centro de Linguística a partir de uma amostra constituída por um milhão de palavras. Aproveito para agradecer a disponibilidade e a gentileza da Doutora Luísa Alice dos Santos Pereira, investigadora deste centro, que prontamente acedeu ao meu pedido.
Sintetizo os resultados obtidos a partir de cada um dos instrumentos:
1 Biblioteca Virtual dos Autores Portugueses
a) A expressão ter de ver com (assinalo a presença da preposição com na sequência do verbo ver), significando «dizer (ou não) respeito a alguém» foi usada por Gil Vicente na Farsa de Inês Pereira (1523):
Mãe: Agora vos digo que Inês está no paraíso.
Inês: Que tendes de ver com isso, todo o mal há-de ser meu.
2 Corpus CETEMpúblico
Identifiquei 98 frases em que surgem dois dos verbos em análise, estando sempre um deles no infinitivo. As construções isoladas foram as seguintes:
a) ter a ver com surge 58 vezes; ter que ver com ocorre em 11 frases, num total da 69 exemplos. Em todos os casos é estabelecida uma relação entre dois acontecimentos ou duas situações, concluindo-se se têm (1) ou não (2) relação entre si:
(1) «Se eu fosse ingénuo acreditaria que este silêncio nada tem a ver com o auto-afastamento de Cardoso e Cunha…»
(2) «A situação que se está a viver também tem a ver com o facto de se ter confiado, sem limites, nas forças do mercado.»
Essa relação pode, em alguns casos assumir um sentido mais forte, aproximando-se da responsabilidade:
(3) «Quem disse que a Comissão da Comunidade nada tinha a ver com o Alqueva…?»
b) A expressão ter que ter surge oito vezes sem que a construção cause quaisquer dúvidas sobre a sua correcção. O sentido veiculado é a obrigatoriedade, ou a necessidade:
(4) «Um projecto como a Expo tem que ter ajustes quase diários.»
c) Ter de/que haver ocorre 13 vezes sempre com sentido de obrigatoriedade ou necessidade.
d) Não ocorreu nenhuma frase correcta que contivesse a expressão ter a haver.
e) Identifiquei um registo errado com ter a haver com:
(5) *«De qualquer modo, estas discussões “ocas” não têm nada a haver com os seus procedimentos reais.»
Deveria estar escrito:
(5.1) «De qualquer modo, estas discussões “ocas” não têm nada a ver com os seus procedimentos reais.»
Os verbos ver e haver co-ocorrem em quatro situações; num dos casos haver surge como auxiliar de um tempo composto e nos restantes três o conjunto transmite uma ideia de finalidade, próxima da que se verifica nas construções com o verbo ter que + infinitivo:
(6) «… no estádio há mais que ver…»
d) Em duas frases a expressão é ter de ver, sendo o sentido de obrigatoriedade.
Da análise destes 98 exemplos conclui-se:
1.º A expressão ter a ver com é muito mais frequente do que ter que ver com. Qualquer delas, no entanto, transmite valores próximos de estar relacionado, relacionar-se, havendo sempre duas realidades que se confrontam ou relacionam;
2.º O verbo ter pode repetir-se na estrutura ter + infinitivo sem que tal facto seja visto como construção pouco razoável do português;
3.º Ter que haver tem como sentido prioritário obrigatoriedade, não tendo surgido nunca com o sentido que se atribui a ter a haver, construção esta que, aliás, só ocorreu uma vez e em contexto inadequado.
4.º O uso de ter é muito mais frequente do que o de haver, únicos verbos que surgem a iniciar qualquer das expressões, isto é, conjugados.
3 – CPRP
Partindo destas conclusões parciais, consultei o subcorpus do CRPC, restringindo a minha pesquisa a dois aspectos:
a) Ver as construções ter a/que ver com e respectivos sentidos;
b) Verificar o número de ocorrências de ter a/de/que haver e seus sentidos.
Para atingir o objectivo enunciado em a) consultei o corpus ELAN, constituído por textos jornalísticos num total de 1 998 885 palavras. Identifiquei 149 frases: 141 em que surge ter a ver com, sempre estabelecendo valores já identificados na análise do corpus anterior e oito em que se regista ter que ver com, mantendo-se o sentido global de estar relacionado, relacionar. Este corpus valida, assim, a orientação do CETEMpúblico, demonstrando a maior frequência de ter a ver com, em relação a ter que ver com.
Para pesquisar as ocorrências de ter de/que/a haver consultei a globalidade dos corpora do subcorpus disponível por via electrónica, composto por 4 646 737 palavras extraídas de vários tipos de textos. Ocorreram 35 frases:
a) Uma é incorrecta, pois aparece ter a haver com por ter a ver com:
(7) «*Andy, Day e Claire ( terá algo a haver com a Claire de “Until the end…”»
Deveria estar escrito:
(7.1) «Andy, Day e Claire ( terá algo a ver com a Claire de “Until the end…”»
b) Surgem quatro exemplos com ter de se haver, no sentido de ter de prestar contas:
(8) «A própria FAYAL COAL teve de se haver comigo nos fornecimentos de carvão.»
c) Ter de haver com sentido de obrigatoriedade, necessidade ocorre 26 vezes.
(9) «… também aqui tem de haver prudência e comedimento.»
d) Ter que haver ocorre 4 vezes, sempre com o mesmo sentido de ter de haver.
(10) «… tem que haver sempre alguém para relatar o que viu.»
e) Não surge uma única vez a expressão ter a haver integrada numa frase correcta.
4 Texto oral e texto literário
A quarta pesquisa pretendia, como a terceira, validar as conclusões a que fui chegando. Solicitei à Doutora Luísa Alice que efectuasse uma pesquisa em dois tipos de textos, oral e literário, num total de um milhão de palavras, para ver se surgiam as expressões ter que/a ver, ter que/a haver. Porque os resultados não alteram o que já foi dito, não me vou alongar com a descrição pormenorizada dos resultados. Refiro apenas que nunca surgiu ter a haver.
Do cotejo entre os resultados da análise dos vários corpora, concluo, em relação ao verbo haver:
(i) Ter de haver e ter que haver surgem sempre com sentido de obrigatoriedade, necessidade;
(ii) Os verbos ter e haver podem associar-se para obter outras construções e outros sentidos, como, por exemplo, ter de se haver;
(iii) A expressão ter a haver é marginal na língua e deve ocorrer apenas em contextos muito específicos, pois não surge nas pesquisas efectuadas, apesar da variedade dos tipos de texto consultados.
Relacionando esta já longa exposição com a minha resposta anterior mantenho:
a) Que a expressão ter de + infinitivo transmite, hoje, o sentido de obrigatoriedade.
b) A expressão ter que + infinitivo designa sobretudo a finalidade, mas pode surgir com sentido de obrigatoriedade, ou na expressão ter que ver com significando estar (ou não) relacionado;
c) Ter a + infinitivo usa-se sobretudo na expressão ter a ver com, significando estar relacionado. Este é o sentido principal desta expressão, seja ela ter a ver com ou ter que ver com. A existência da preposição com à direita do verbo ver é indispensável para a construção deste sentido e já o era para Gil Vicente na expressão ter de ver com, cujo sentido se aproxima do que aqui se defende para ter a ver com.
A expressão referida, por exemplo, na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, ter com, significando, cito (e citando aproveito para declarar que considero todos estes sentidos associados ao que tenho vindo a defender como relacionar, estar relacionado): «estar interessado em ou relacionado com; interessar-se por; haver em comum; haver semelhança ou analogia: nada tenho com isso.» (destaque meu) não surgiu uma única vez na globalidade da pesquisa realizada. Além disso, em muitos casos não parece conduzir a frases bem formadas. Repito os exemplos (1) e (2), que numero como (11) e (12), utilizando ter com em vez de ter a ver com:
(11) «Se eu fosse ingénuo acreditaria que este silêncio nada tem com o auto-afastamento de Cardoso e Cunha…»
(12) *«A situação que se está a viver também tem com o facto de se ter confiado, sem limites, nas forças do mercado.»
A boa formação de (11), em contraste com (12) justifica-se pelo facto de a frase (11) estar na negativa. Também se obtém uma construção aceitável, com a expressão ter com na forma interrogativa, podendo, neste caso, a expressão ser reduzida à preposição com:
(13) – A Maria foi de férias.
– E eu com isso? (= E que tenho eu com isso?)
Parece-me poder dizer-se (embora falte estudo apurado que valide a afirmação) que ter com ou só com são, neste tipo de construções, uma variação de ter a ver com em que se elidem alguns dos elementos, que podem, no entanto, ser recuperados pelo contexto. Saliento o facto de poderem ser elididos os dois verbos, suportando a preposição com a transmissão do sentido, o que aponta para a sua importância nesta construção;
d) A construção ter a ver com ou ter que ver com mantém uma certa fixidez de estrutura e de sentido, não se confundindo com as outras situações em que o verbo ter é seguido de outro verbo no infinitivo, mesmo quando esse outro verbo é o verbo ver.
Relembro os pressupostos que apresentei no início e, ao fazê-lo, salvaguardo a possibilidade de, em contextos específicos, estas expressões adquirirem sentidos também específicos. Salvaguardo ainda a possibilidade de o consulente ter em mente, ou ter conhecimento explícito, de ocorrências em que a expressão ganhe outros sentidos. Essa hipótese não desmente a análise feita, antes corrobora um dos meus pressupostos iniciais: eu não conheço todas as construções da Língua Portuguesa, nem todos os sentidos que lhes podem ser atribuídos.
Agradeço, uma vez mais à Doutora Luísa Alice do CLUL, o interesse e a prontidão com que acedeu ao meu pedido. Agradeço, em última análise, a todos os que trabalham para que os corpora estejam disponíveis na Internet, pois de outra forma este trabalho não poderia ter sido feito.