DÚVIDAS

A história de «ter que ver com» e «ter a haver»

Não será em rigor uma pergunta pois, a sê-lo, de antemão se considera que se encontra suficientemente respondida por anteriores contributos de Edite Prada neste sítio. No entanto, ainda que carecendo de qualquer estudo e numa base puramente dedutiva, especulativa, ou mesmo intuitiva, se retoma aqui a hipótese, já aventada, de que nas expressões «ter a ver com» e «ter que ver com», o «ver» surja por corruptela de haver.

É que, ainda que algum dicionário possa atribuir ao verbo ver o significado mais metafórico de «ver com os olhos do espírito» – como foi referido – e portanto se possa sempre admitir significados menos "directos", a expressão actual continua a soar, pelo menos a mim, muito pouco natural.

De facto, aquilo que me parece mais plausível é que, numa origem remota – e remota terá aqui, como vimos, de reportar-se a período pré-vicentino –, a expressão que estaria na base da que hoje se encontra a uso e (como demonstrado no levantamento de Edite Prada), completamente fixada, seria «ter a haver», no sentido de «ter a receber dinheiro devido, ser parte interessada em função dessa dívida por saldar». Reforça esta hipótese, creio, o facto de a expressão surgir amiúde na negativa: por exemplo, «você não tem nada a ver com isto». Por esta via, parece-me plausível supor que, na origem, esta expressão tenha nascido desta ideia de que alguém, não tendo a haver, não é parte interessada e, portanto, não tem, digamos assim, de intrometer-se. O que é válido na positiva: quem tem a haver, tem um legítimo interesse no negócio, uma razão para se meter no assunto; que haja algo a haver, vincula duas partes juridicamente, ou seja, coloca-as em relação. Donde, deduzo igualmente que a expressão se tenha aplicado originalmente apenas a pessoas, e só mais tarde possa ter servido para dizer que os alhos não têm a ver com os bugalhos.

Note-se, em abono desta tese, que o próprio complemento «com» poderá, aliás, teria mesmo de ter já sido introduzido no processo de modificação da expressão. Isto por ela, então (aventa-se) como hoje, nem sempre surge completa, isto é, com o complemento – diz-se muito, por exemplo, «isso não tem nada a ver». E, portanto, parece-me mais lógico, tanto quanto a lógica possa presidir à linguagem, que tenham sido expressões como «não se meta, que não tem nada a haver», a abrir caminho às sucessivas modificações que nos trazem ao «ter a ver com».

Resumindo, defendo aqui a hipótese – a que o nível de linguagem em causa, coloquial e, portanto, mais plástico, pode tornar mais plausível – de que a expressão tenha sido sucessivamente modificada, desta forma: «ter a haver de» – «ter a haver» – «ter a ver» – «ter a ver com». Ou ter começado simplesmente como «ter a haver», sendo que o «com» de hoje vem, justamente, confirmar o elemento relacional que, na passagem de «haver» para «ver», se torna pouco natural e menos evidente (ainda que admitindo os tais outros possíveis sentido de ver).

Fica o exercício, a título de curiosidade e, suponho, nada mais que isso, já que para o conhecimento do português coloquial de há 600 ou 700 anos, infelizmente, não há bases de dados que nos valham.

Resposta

De facto, não se encontram ocorrências de «ter que ver com» em documentos anteriores ao século XVIII, pelo menos, no Corpus do Português, de Mark Davies e Michael Ferreira. Além disso, já que se propõe a distância de 600 ou 700 anos para propor a hipótese formulada no comentário, e sabendo dos laços estreitos do português com a Galiza, diga-se que também não se identifica a expressão no galego antigo (cf. Tesouro Medieval Informatizado da Língua Galega). Não obstante, no espaço ibérico, em castelhano antigo, encontramos documentos nos quais ocorre a expressão correspondente (Corpus del Español, de Mark Davies):

Siete Partidas – s. XIII: «la muger non auiendo que ver con otro nin el marido con otra.»

Conde Lucanor  s. XIV: «otro si dize que este rey don alfonso fue casado con berta hermana del rey carlos pero nunca ovo que ver con ella.»

Atalaya de las Crónicas  s. XV: «E los castellanos de alli adelante non touieron mas que ver con el Rey de leon & fueron francos en toda su tierra.»

Tratado de los Pecados  s. XVI: «Pero esto no tiene que ver con el evitar el pecado de usura e injusticia.»

Mesmo que a expressão fosse desconhecida em Portugal antes do século XV, é de supor que passasse a ser conhecida sobretudo no final desse século, na corte de Lisboa, que se tornou bilingue, situação linguística que também explica as várias peças no castelhano algo aportuguesado de Gil Vicente. Sugiro, por isso, que, face ao frequente contacto de certa camada social portuguesa com o castelhano, principalmente nos finais do século XV, há forte probabilidade de «ter que ver com» ser expressão conhecida em Portugal desde o referido século, que sem dificuldade se transpôs para o português.

Saliente-se ainda que «ter a haver que» só ocorre duas vezes, em textos do século XX, no Corpus do Português, de Mark Davies e Michael Ferreira. Outra sequência semelhante corre mais frequentemente no corpus consultado, «haver-se com», com o significado de «enfrentar», «lidar»:

João de Lucena, História de São Francisco Xavier, s. XVI  «e assim parece se quis em parte haver com o tirano de Jafanapatão.»

Luís Fróis, História de Japão, s. XVI  «sobre este fundamento lhes fez huma larga exhortação, e de como se havião de haver com a christandade.»

João de Barros, Década Terceira, Livros I-X, s. XVI: «E polo que ele, Garcia de Sá, sentia del-Rei e do seu Governador, pelas cartas que lhe escreviam da maneira que ele, Garcia de Sá, se havia de haver com as cousas de Maluco, a ele lhe parecia que não tardaria muito mandarem um capitão pera fazer a fortaleza.»

Em suma, na recolha aqui feita, de dados respeitantes ao português, que não vão além do s. XVI,  não se encontram ocorrências do uso de «ter a haver com» que confirmem a hipótese em referência.

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