Finalmente parece ter alargado o debate sobre o Acordo Ortográfico, dezoito anos após sua assinatura. De repente, muitas entidades alarmam-se e reclamam da ausência de discussão. Com razão. Só que algumas delas — como representantes de escritores e editores no conjunto lusófono — fazem parte dos que silenciaram o assunto.
Infelizmente o debate tem inicio num momento em que algumas informações, revelam que o Governo português vai ceder a pressões e adiar por dez anos a entrada em vigor do Acordo. Se isso acontecer, Portugal vai ficar numa posição diplomática muito difícil.
Em primeiro lugar, porque Portugal sempre afirmou seu respeito pela CPLP. Foi numa de suas cimeiras que esta decidiu, por unanimidade, a aplicação prática do acordo quando três países o ratificassem, condição já cumprida desde o ano passado, com as ratificações do Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. No começo de Novembro, dizia-se em Luanda que a Assembleia Nacional também se prepara para votar o documento, que andou esquecido.
Em segundo lugar, porque Portugal é o fiel depositário das ratificações, ou seja, que os demais membros confiaram nele para receber instrumentos jurídicos do conjunto CPLP, em termos práticos e não apenas de arquivo.
No fundo o Acordo é muito simples. Corta acentos excessivos, abole as consoantes mudas e reintroduz letras como k w y.
Torna a lingua mais fácil, aproxima escrita e fonética, e moderniza-se. No total, mexe com cerca de 0,40% das palavras usadas no Brasil e pouco mais de 1% da ortografia de Portugal. O obsoleto trema brasileiro acaba, o optimo passa a ser ótimo e a redacção fica redação. Quanto a facto e fato ficam na mesma, porque não há nenhuma mudez nelas...
Por outro lado, consagra uma gama de palavras usadas em Angola com letras que hoje não fazem parte oficialmente do alfabeto, incluindo nomes de cidades, unidade monetária, grandes pontos geográficos e nomes de pessoas (por exemplo Waco Kungo, Yoba, Kwanza, Kunene, etc).
O equívoco das editoras portuguesas
A língua portuguesa evolui como qualquer outra língua que se quer viva e sempre houve resistências às sucessivas modernizações. Já D. Dinis teve de enfrentar narizes torcidos dos tradicionalistas quando oficializou a língua em detrimento do latim. Séculos depois, alguns da mesma tendência, queria manter pharmacia, telephonico, commércio ou cryptographico.
Desde finais do século XIX decorre a troca de ironias entre sotaques e estilos literários de Portugal e Brasil, cada um procurando ridicularizar o outro, gerando desconfianças ou más vontades, impeditivos de se chegar a acordo que evite a evolução para escritas distintas. Em 1911, Portugal fez uma reforma ortográfica que não foi extensiva ao Brasil. Em 1931 as Academias dos dois países chegaram a acordo, mas sem efeitos práticos, voltando-se a novas reuniões em 1943 e 1945. Mudaram-se algumas coisas e ficou-se na mesma em outras.
Após leis promulgadas em cada país na década de setenta, que reduziam os pontos divergentes, teve inicio em 1986 um encontro mais alargado porque incluía pela primeira vez os africanos. Um primeiro texto foi elaborado, mas seria inviabilizado por resistências conservadoras ou má formulação dos termos acordados.
A negociação recomeçou e todos os membros da CPLP assinaram em 1990 um documento baseado na experiência dos malogros anteriores e metodologicamente cuidadoso. Com base nele, textos produzidos em qualquer país da CPLP são legais, evitando-se situações, como ocorreu numa cimeira da entidade, em que foram exigidos dois textos de resolução final... na mesma língua.
Para África é ainda mais importante, na medida em que pode contar com textos didácticos de origens diversas. Este aspecto parece ser grande preocupação dos editores portugueses que, em comunicado recente, temem que a ratificação do protocolo ponha em causa «o sucesso obtido pelas editoras portuguesas em Angola e Moçambique».
É claro que, a médio prazo, Angola e Moçambique vão desenvolver suas próprias editoras e abertura maior ou menor à importação de livros vai depender da legislação aduaneira. Por outro lado, a constituição do capital das editoras, seja onde for, está sempre ligada às regras sobre investimento estrangeiro em geral.
O que poderia ser mau para as editoras portuguesas é se Portugal ficasse sozinho, com uma ortografia diferente dos demais, ou pelo menos de alguns deles. É que os países africanos que ratificaram ou venham a ratificar podem ter a tendência de afirmar sua autonomia cultural e coloquem em vigor diplomas legais ratificados pelos respectivos parlamentos. Como mandam as respectivas Constituições.
in Público, de 26 de Novembro de 2007, sob o título "A polémica ortográfica"