Estou certa de que a maioria esmagadora dos portugueses continua a não entender o que realmente se passa relativamente à questão do famoso Acordo Ortográfico assinado em 1991. Para muitos, o último episódio do ‘processo Acordo Ortográfico’, protagonizado pelo PR durante a recente viagem ao Brasil, publicitando uma decisão do Governo, terá significado que, por fim, o dito acordo entrou em vigor. Ora, tal não é verdade.
Fruto de um longuíssimo processo de acordos, protocolos modificativos e ratificações, cuja descrição a exiguidade de espaço me impede de pormenorizar, o acordo já estava em vigor, do ponto de vista jurídico, em todo o espaço da CPLP desde que, há cerca de um ano, três países — Brasil, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe — ratificaram o último dos protocolos modificativos, o qual estipulava que bastaria a ratificação por três, em lugar dos sete, dos Estados membros para que entrasse em vigor. Portugal e todos os parceiros da CPLP deveriam nessa altura ter começado a pô-lo no terreno. Ora, como toda a gente sabe, nada aconteceu, nem cá, nem no resto da CPLP, nem mesmo no Brasil que procurou, a partir de um certo momento e por interesses de diversa natureza, entre os quais está o domínio do mercado editorial da CPLP, que até agora Portugal detém, liderar o processo acompanhado daqueles dois países.
Então o que é que realmente se passou na última semana? Apenas isto: o Governo decidiu pedir uma moratória de seis anos para aplicar o acordo, tempo considerado indispensável para adaptar edições, designadamente escolares, dicionários, prontuários… à nova ortografia. Dir-me-ão que é muito ou é pouco, conforme se esteja contra ou a favor do acordo. Pessoalmente, estou em crer que é apenas mais um episódio do processo…
Como qualquer acordo meramente ortográfico não vai contribuir, como muita gente ingenuamente pensa, para aproximar as diversas variantes que o Português hoje contempla no espaço da CPLP, exactamente porque é ortográfico e toda a língua viva move-se independentemente da ortografia que a normaliza e pretende fixar. Poderá contribuir, claro está, para a sedimentação de um mercado único do livro no seio da CPLP cuja liderança será mais disputada entre Portugal e Brasil. E poderá contribuir — o que, isso sim, é muito preocupante — para romper a unidade ortográfica que, apesar de tudo, hoje existe no seio de todos os países da CPLP com exclusão do Brasil, se não for garantida (coisa que se me afigura algo difícil de obter) a simultânea adesão e aplicação do acordo por parte de todos os países. Caso contrário poderá até acontecer um cenário perverso de fragmentação — a criação de uma unidade ortográfica entre Portugal e Brasil, com África de fora; ou mesmo o aparecimento de três blocos, Portugal (com nova ortografia daqui a seis anos), África mantendo a actual (europeia) e Brasil continuando com a sua. Lembro que o Brasil não mudou a sua ortografia em acordos anteriores…
Nesse caso, será bem pior a emenda que o soneto. Esperemos que não!
Não diabolizo o acordo, nem me entusiasmo com ele. Acho que já veio fora de tempo e a sua efectiva aplicação ainda mais fora de tempo virá.
artigo de opinião publicado no semanário Sol de 15 de Março de 2008