Em 1911, pouco tempo depois da implantação da República, houve força suficiente para que a revolução chegasse também à língua, numa altura de quase discricionariedade na escrita, com o uso das letras dobradas, do ph, do ye de outras heranças etimológicas com que se mostrava erudição individual. A resistência dos conservadores foi enorme; há testemunhos escritos, hoje considerados caricatos.
As consoantes mudas levaram também sumiço no acordo de 1931 (exemplo: ceptropassava a cetro e só se admitia o grupo cc quando as duas consoantes se pronunciassem). O Governo brasileiro estabeleceu oficialmente esta ortografia em 1938. No entanto, a Academia das Ciências de Lisboa não acatou a determinação de 1931, e, em 1940, publicou o seu completo Vocabulário, que introduzia as consoantes mudas. Em 1945, após tentativas de aproximação, foi feito um novo acordo entre os cientistas de Portugal e do Brasil (a norma que presentemente ainda nos rege em Portugal, nas suas bases fundamentais). Nele mantinham-se as consoantes não articuladas, com o pretexto de se respeitar a história das palavras e a abertura da vogal anterior (isto sem sentido em palavras como actividade ou didáctica…). Estabelecia ainda a ideia peregrina de o acento agudo poder ter o valor do circunflexo, como por exemplo na palavra António (no Brasil Antônio). Claro que, por sua vez, o Brasil não acatou este acordo, pois violentava os seus hábitos linguísticos já consagrados.
Entretanto, o esforço de aproximação entre os cientistas irmãos na língua não parava, e em 1986 foi apresentado um projecto revolucionário de ortografia que, por exemplo, duma vez liquidava a querela António/Antônio, pois suprimia os acentos nas esdrúxulas. Ficou então célebre a resistência portuguesa, no medo de que a palavra `cágado´ ficasse sem acento. Note-se que os acentos nas esdrúxulas foram introduzidos em 1911, mas em 1919 ainda muita gente não os usava, sem que fizessem grande falta…
É oportuno sublinhar que o tenaz esforço de aproximação nunca esmoreceu. Assim, as duas normas ortográficas, como que por milagre, acabaram por ser quase idênticas ponto por ponto, conseguindo-se que seja indiscutível tratar-se da mesma língua, não obstante as diferenças semânticas e de prolação. Isso deveu-se também ao facto de que os avisados cientistas, nas suas reuniões, mantiveram sempre a base etimológica na língua, permitindo a enorme riqueza da sua adaptação a todas as pronúncias (salvo quando as letras não serviam para nada…). Neste impressionante objectivo de aproximação, foi finalmente assinado o acordo de 1990, agora com ampla concordância (dos sete países da Lusofonia na altura). Neste acordo, estabelecem-se duplas grafias nos casos indispensáveis, para não alterar o uso nos dois países, o Brasil faz várias cedências nos acentos e Portugal consente finalmente em acabar com a teimosia das consoantes não articuladas (além de outras simplificações, modestas para evitar muitas resistências).
Ora a uniformização na língua é importante também para Portugal. Não faz sentido que nas instâncias internacionais apareça uma variante da língua que se diga brasileira, quando a língua é a mesma. Os defensores do caduco «orgulhosamente sós» que se cuidem…
Um problema é o interesse legítimo das editoras. De acordo que é necessário um prazo para escoamento das edições com a norma anterior.. No entanto, dez anos é excessivo; bastariam quatro a cinco, visto que o Brasil pretende estar em vigor pleno muito cedo. Note-se que se o Brasil avançar rapidamente, como já pode, e se conseguir cativar outros países que presentemente seguem o português europeu, o papel inverte-se, e serão as editoras portuguesas que aí ficarão blindadas, se continuarem com a norma antiga.
Um outro motivo para a resistência à mudança na língua é o receio de que depois não se saiba escrever correctamente, nos hábitos que se tem de escrever na grafia actual. Como as pessoas se assustam sobretudo com o desconhecido, indicam-se na página www.dsilvasfilho.com, em Problemas Ortográficos > Linguística, do Autor deste texto [vide também O que (não) muda com o Acordo Ortográfico (1990)] as alterações previstas, em pormenor. Pode-se observar que muitas bases ficam sem alteração nos hábitos actuais de escrita e que as outras são simplificações úteis ou de fácil adaptação.
artigo publicado no Jornal de Notícias de 3 de Dezembro de 2007