Os tementes a Deus, os reverentes da Academia e os assustados da gramática andam numa fona discreteando acerca do Acordo Ortográfico. É lá com eles. Tenho para mim que não vou tirar o P ao Baptista nem desacentuar o advérbio cristãmente, com til a coroar o A. Não vou deixar de entender o Guimarães Rosa, o Graciliano, o Godofredo Rangel, o Rubem Braga, o Mia ou o Luandino por cada um deles escrever do modo, com o tom e o registo fonético, sintáctico ou ortográfico que muito bem desejarem.
Gosto deles. Está dito. Possuem sopro original, grito d'alma, impulso. As confusões que por aí há, em vários domínios, géneros e categorias são gritantes. Chama-se crónica a artigo; conto a novela, comentário a ensaio. O disparate e a ignorância já têm carta de alforria. Vamos a isto: Agripino Grieco, temível crítico brasileiro, que se servia do cacete para infundir o temor, não para expor ideias, regougou, um dia, que cronista era uma espécie de nadador de piscina, e que romancista era de alto mar. Tolice. A qualidade de um texto não obedece a correlações aquáticas, nem há medidas decimais aplicáveis à literatura, assim como não há espartilho que imobilize a ânsia de liberdade que o idioma não deixa esmorecer.
Hemingway, velho mestre, é incomparavelmente melhor contista do que romancista. Um crítico disse que ele não sabia gramática; Edmund Wilson, o maior ensaísta norte-americano do século XX, consignou que o autor de O Adeus às Armas estava na posse de um estilo semelhante ao de Shakespeare. Scott Fitzgerald, o imenso escritor de Terna é a Noite e de O Grande Gatsby, redigia com pavorosos erros ortográficos. Não deixou de ser quem era.
Borges é um fascínio em três folhas de papel A-4. Manuel da Fonseca narrou o Alentejo, como ninguém, e, nas quatro páginas de O Largo disse da grandeza trágica da sua província. Duas páginas de Carlos de Oliveira valem mais do que todos os livros de António Lobo Antunes, um realejo maçador e agónico. Mas há Tchecov, Maupassant, Katherine Mansfield, Maria Judite de Carvalho, O. Henry, Carver, Michael Gold. Cronistas, contistas — onde a distinção? Cada qual com a sua ortografia, a sua gramática. Um jogo au naturel, sem preservativo, por isso com riscos imensos e desafios incomensuráveis.
Não quero que me furtem o estilo com camisas-de-forças ou camisas de Vénus. Fui editado no Brasil, há anos, através da Nórdica. O romancinho, A Colina de Cristal, obteve um êxito para mim inesperado. Havia uma imposição minha: nada de alterar a sintaxe; português de Portugal. Tal como Jorge Amado e Graciliano Ramos não permitiram que as suas estruturas verbais fossem adaptadas àquelas que são de uso em Portugal. Não sou dono da língua. Porém, não quero que esfolem a minha, pessoal, intransmissível, singular como uma dedada. Por isso admiro, com assombro e veneração, os demiurgos que não obedecem a regras, a regra é não ter regra, e lá estão o Ferreira Gullar, saúde companheiro!, o João Cabral de Melo Neto, o Carlos Drummond, nada de salsaparrilhas, gente de tinto espesso e de cachaça, minha gente, que leio, releio, copio e invejo. Como eles o fizeram, no diálogo emprestado que constitui a língua nossa, cordilheira infinita.
A língua é tua, é minha, é de todos nós. Estremeço de emoção com o português escrito e falado em Luanda, no Alto Xingu, em Cabo Verde, no Rio de todos os Janeiros e de todos os sons. Só um imbecil ou um cego mental podem converter o desabrido acto de liberdade que é o idioma numa referência de armazém.
Deus lhes cuide!, como se diz em Angola. Deus lhes olhe!, como no Rio de Janeiro. Deus os haja!, ouvi, certa noite numa rua de Luanda.
Quanto a mim, vou andando um pouco mais nesta escrita.
crónica publicada na revista "África 21" de Dezembro de 2007