Em teoria, as alterações previstas já transbordam para o quotidiano do Brasil. No plano das intenções, o país com 187 milhões de pessoas a falar português queria formalizar a entrada em vigor do Acordo Ortográfico já em 2008. E deu sinais nesse sentido. O desaparecimento do trema, por exemplo, foi decretado no final do ano passado. A extinção dos dois pontos em cima do u é um dos indícios dessa vontade. Na prática, o Brasil está à espera. O léxico diplomático ajuda a ocultar alguma saturação com os impasses do outro lado do Atlântico.
«A gente quer marchar com Portugal. E não avançar sem ele, isso não faria sentido», disse ao "Público" Godofredo Oliveira Neto, que preside ao organismo responsável pela concretização do acordo, a Comissão para Definição da Política de Ensino-Aprendizagem, Pesquisa e Promoção da Língua Portuguesa (Colip).
O Brasil podia já ter avançado, uma vez que o acordo já foi ratificado por mais de três países, limite mínimo estabelecido pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). «Diplomaticamente, nós reavaliámos a situação e constatámos que o acordo, que era algo para unificar a ortografia, já nasceria desunido, se o acto de adopção fosse isolado», vinca.
A classe académica é mais contundente na reacção. «A indefinição de Portugal está a emperrar todo o processo. Não se percebe e não quero admitir que os adiamentos sejam motivados pelos receios de "brasileirização" da língua», solta Emerson Inácio, professor de Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo. As editoras preparavam-se para avançar com as alterações em Dezembro, final do período lectivo no Brasil.
O impasse é, então, político. Recentemente, o ministro das Relações Exteriores do Brasil evitou responder se o país avançaria sem Portugal. Sintetizou apenas o sentimento que povoa alguns sectores. «Seria muito importante, do ponto de vista editorial, que Brasil e Portugal estivessem juntos quando se formalizar a adopção do Acordo Ortográfico», referiu. Na maioria dos casos, os membros do Governo de Lula da Silva evitam o tema.
Oi?
Pelas ruas do Rio de Janeiro, apenas com algumas excepções, as perguntas esbarram num invariável oi interrogativo. «Acordo quê?» Ou «Ah sim, aquilo da escrita, não é?»
Alberto Fonseca sabe do que se fala. «Se for para melhorar, para pôr tudo igual, acho muito bem», atira do balcão da lanchonete que possui junto à Praça da Cinelândia, no centro do Rio. «Outro acordo?», pergunta o taxista Adilson Costa. «Eu só não sei é para quê, falamos todos português. Só muda o sotaque.»
A percepção (perceção), e o próprio vocabulário ganham outra espessura na zona sul da cidade. Nos bairros de Ipanema, Copacabana e Leblon o tema é familiar. «É uma bobagem essa ideia utópica de que o acordo vai transformar o português numa língua de relações internacionais», reage o médico Adalberto Iguateri. «Se era para mexer, deviam ter ido mais longe, é uma reforma acanhada», reforça. Sentada numa das esplanadas de Copacabana, Alice Dias folheia um livro. «Você sabia que o Saramago não necessitou ser "traduzido" para ser um best-seller no Brasil. Nem a outra senhora mais nova...» Concluiu-se que falava de Inês Pedrosa. «Eu acho muito bem, a língua é um património comum, deve unificar-se na forma escrita. Depois, pode ter vários sotaques.» Alice Dias já foi professora, mas de Biologia.
Amiúde, o embaixador português Francisco Seixas da Costa participa em programas de televisão e escreve artigos de opinião sobre o assunto, desvalorizando o atraso e criticando alguma dramatização, «como se uns anos a mais ou a menos na conclusão de um texto trouxessem algum mal ao mundo, que viveu sem ele até agora», escrevia em Setembro (setembro) no jornal Estado de São Paulo.
O dedo no horizonte
Além do moribundo trema, a reforma acaba também com os acentos de vôo, lêem, heróico. E premeia a semântica brasileira, que vê a extinção do p, em prática no país, instituída.
Pequenas mudanças, vinca o também escritor Godofredo Neto. Mas com grande simbolismo, acrescenta. «São inúmeras as vantagens que advêm da efectiva (efetiva) adopção das normas já acordadas. Em primeiro lugar, a promoção e a funcionalidade do uso da língua portuguesa nos fóruns internacionais, por exemplo.» Neto diz que não se cansa de alertar para a vacuidade dos «velhos do Restelo» da língua portuguesa. «A unificação ortográfica não atenta contra a variedade da língua oral, nem contra a riqueza das manifestações culturais que a língua veicula.»
Emerson Inácio concorda. Acredita que a sala de aula será o melhor laboratório. «Não tenho dúvida de que, quando a nova ortografia chegar às escolas, toda a sociedade vai acompanhar as mudanças. Vai levar tempo, como ocorreu com a reforma ortográfica de 1971, mas ela entrará em vigor gradualmente.»
O pior são os custos. Os editores consideram-se os perdedores do acordo. Estima-se que o custo médio de revisão de um livro possa atingir os cinco mil reais (18 mil euros). «A minha editora é pequena, mas vou ter de gastar um balúrdio. Espero é que a reforma venha para ficar», disse ao "Público" Jerson Andrade, da editora Estandarte, do Rio de Janeiro.
Para atenuar os receios causados por estas consequências, o presidente da Colip aponta para o horizonte. «Vai exigir ginástica, vai implicar investimentos, mas é um legado que deixamos à história. Afinal, somos a terceira língua mais falada do mundo ocidental.»
in "Público", de 29 de Novembro de 2007