O Acordo Ortográfico está, finalmente, no campo de batalha. E é bom que esteja para que se percebam, com maior profundidade, os argumentos de paladinos e detractores. Ontem [7 de Abril de 2008], no parlamento [português], numa iniciativa por todos louvada (os pró e os contra), discutiu-se acerrimamente o assunto. Em Timor, por exemplo, há quem tema que, não havendo acordo, os professores portugueses e brasileiros não se entendam em relação ao ensino. Isso mesmo foi ali dito e, naturalmente, será sentido com convicção (aqui está uma palavra que não mudará: é dita e escrita da mesma maneira no Brasil e em Portugal, portanto estaremos conversados). Mas como farão tais professores quando lhes surgirem pela frente, por exemplo, estas palavras: facto, como se diz e continuará a dizer e a escrever em Portugal; e fato, como se diz e escreve no Brasil? Ou recepção, como se diz, escreve e continuará a escrever-se no Brasil, contra receção, como há-de escrever-se em Portugal caso o acordo ortográfico vingue? Difícil escolha, claro, porque a escrita continuará diferente em Portugal e no Brasil, já que a ideia é pautar a escrita pela pronúncia. Escrever como se fala, há quem diga. Mas como, se nem mesmo em Portugal escrevemos como falamos?
As pronúncias específicas de cada região ou cidade (Lisboa, Porto, Alentejo, Algarve, Açores, Madeira) encarregam-se de o demonstrar, tal como a escrita se encarrega de mostrar que jamais Portugal e Brasil, já para não falar de África ou qualquer outro país que tenha a língua portuguesa como oficial, escreverá do mesmo modo um grupo de ideias idênticas. Claro que o ministro da Cultura já veio sossegar as hostes dizendo que aos artistas tudo será permitido. Poesia e prosa, estão salvas. É então às escolas que a coisa se dirige. Mas, uma vez mais, voltemos ao enigma: facto ou fato? Percepção ou perceção? Recepção ou receção? Há-de haver quem escolha...
Por falar em escolhas, o acordo em curso parte da ideia celestial de uma harmonia paralinguística entre os países que têm o português por língua oficial. Em lugar de mais uma reforma como foram as anteriores, que fosse adaptando a escrita à evolução da fala onde tal modificação se impusesse (se houve pharmácia para farmácia pode haver agora eléctrico para elétrico), quis-se um acordo imperial e intercontinental que unificasse o que é absolutamente não-unificável: uma língua que já são várias. A menos que se queira convencer as crianças angolanas, por exemplo, que machimbombo afinal é um autocarro ou até um ônibus.
Como ninguém quer, é duvidoso que umas consoantes a mais ou a menos resolvam o magno problema de alguém querer liderar uma mudança que recusa cangaço. Já existe, viva, e nenhum acordo a domará. Se Portugal souber gerir a sua herança, preservando traços essenciais do idioma, não estará a trancá-lo a sete chaves, até porque há muito que muitos arrombaram (e bem) o cofre. Estará apenas a defender a sua cultura, abdicando de "unificar" culturas alheias. O próprio texto do acordo de 1990 que a CPLP divulgou e que continua na Net (cheio de desatenções e erros, prova de pressa e mau trabalho) mantém, por assim existir em Portugal e no Brasil, duplas acentuações: antropónimos/antropônimos, tónicas/tônicas, bibliónimos/bibliônimos. Em defesa do acordo, um deputado do Bloco de Esquerda disse ontem que assim haverá "uma cogestão da língua". Oxalá não se transforme em congestão.
artigo publicado no jornal português Público de 8 de Abril de 2008