«(...) Não existe nenhuma ortografia sacralizada pela tradição, tendo havido várias reformas ortográficas nos últimos cem anos. (...)»
Desde a sua assinatura em 1990, sou apoiante declarado do acordo ortográfico para unificar tanto quanto possível a língua portuguesa escrita, eliminando as discrepâncias entre a norma europeia (e africana) e a norma brasileira. E também nunca entendi bem as razões pelas quais Portugal, que ratificou o acordo logo em 1991, não fez depois nada para conseguir a ratificação dos Estados que o não fizeram, nem as que agora justificam uma "moratória" de dez anos para a sua efectiva entrada em vigor.
São grandes as vantagens da uniformização ortográfica, salvaguardando os casos em que a divergência de grafia resulta de diferenças de pronúncia (por exemplo o "facto" português e o "fato" brasileiro). Primeiro, a nova ortografia aproxima a língua escrita da língua falada (caso da eliminação das consoantes mudas no português europeu), o que é bem-vindo. Segundo, não existe nenhuma razão lógica para que uma mesma língua mantenha tantas divergências ortográficas entre duas normas nacionais, quando elas não correspondem a uma divergência real na sua expressão oral. Terceiro, na era da Internet e dos conteúdos por ela disponibilizados, em que se torna essencial promover conteúdos em português, a existência de duas normas ortográficas com numerosas diferenças obriga a duplicações e dificulta a expansão e globalização da nossa língua. Quarto, com o crescimento do intercâmbio no espaço lusófono, nos planos económico, turístico, académico, das emissões televisivas, etc., a existência de duas normas ortográficas introduz um "ruído" comunicacional que perturba a criação de um espaço lusófono sem barreiras linguísticas. Quinto, a convergência ortográfica numa única norma oficial facilita a aprendizagem do português como língua estrangeira, independentemente do país onde ela ocorra.
Aliás, se a reforma é criticável (e não existem reformas perfeitas...), sê-lo-á porventura por ser minimalista e pouco ambiciosa, não faltando aqueles (e entre eles me incluo) que defendem uma revisão mais abrangente da ortografia oficial, de modo a reduzir a sua enorme dificuldade e falta de coerência, incluindo a uniformização da correspondência gráfica de certos sons, a eliminação da versatilidade fonética de certos grafemas, sem esquecer de equacionar a supressão do h inicial, entre nós sempre mudo (como sucedeu no italiano). É evidente que uma reforma desta envergadura tem poucas (ou nenhumas...) possibilidades de alguma vez vir a ser concebida. Mas sem ela dificilmente se deixará de cavar o fosso entre a versão oral da língua e a sua versão escrita.
Não considero procedentes os argumentos que têm sido lançados contra a reforma ortográfica. Não existe nenhuma ortografia sacralizada pela tradição, tendo havido várias reformas ortográficas nos últimos cem anos. Não faz sentido acusar a reforma de ser uma cedência do "português" ao "brasileiro": primeiro, porque o Brasil é de longe o principal "dono" da língua; depois, porque as mudanças são bilaterais; por último, porque na falta de unificação ortográfica será a norma brasileira a impor-se, dado o maior peso populacional do país. Não é convincente o argumento sobre a dificuldade de adaptação das pessoas a uma nova ortografia, pois a experiência entre nós e lá fora mostra que a transição para uma nova norma ortográfica se faz sem grandes dificuldades para a generalidade dos utentes da língua. Tampouco tem razão o argumento de que algumas alterações, como a eliminação das consoantes mudas (de "projecto" para "projeto", por exemplo), cria o risco de provocar uma mudança na respectiva pronúncia, ensurdecendo a vogal associada, pela simples razão de que a presença dessas consoantes não tem impedido esse resultado entre nós, como sucede hoje com a pronúncia das palavras "actual", "actriz", etc., normalmente pronunciadas como "âtual" e "âtriz".
A verdade é que a grande oposição ao Acordo Ortográfico, para além de "puristas" e conservadores avulsos, tem provindo, desde o princípio, dos editores portugueses, que não desejam ter de reeditar os seus fundos bibliográficos e que temem sobretudo a concorrência brasileira na edição de livros escolares e técnicos em mercados actualmente reservados para a indústria nacional, como é o caso dos mercados africanos, onde vigora a norma ortográfica portuguesa. Todavia, numa questão de interesse nacional como esta não devem ser grupos de interesse sectoriais, por relevantes que sejam, a levar a melhor, sobretudo quando se trata de salvaguardar coutadas de negócios. Não se justifica por isso a longa moratória de 10-anos-10 defendida oficialmente entre nós, seja porque o prazo de vigência dos livros escolares é muito inferior, seja porque a adopção de um tão longo prazo pode criar a ideia de que a reforma ficará mais uma vez esquecida na gaveta.
O Acordo de 1990 não foi ratificado por todos os oito Estados que têm o português como língua oficial, só o tendo feito Portugal, o Brasil, Cabo Verde e mais recentemente São Tomé e Príncipe, pelo que não chegou a tornar-se vinculativo. Porém, um protocolo modificativo de 2004 permite que o acordo entre em vigor apenas com a ratificação de três países da CPLP. Este instrumento adicional, já ratificado pelo Brasil, por Cabo Verde e por São Tomé (pelo que o acordo já entrou formalmente em vigor), ainda não tem a ratificação portuguesa. Tendo havido, há algum tempo, um anúncio público de que a ratificação poderia ocorrer ainda no ano corrente, isso não sucedeu.
A ratificação portuguesa é essencial, não somente para que o acordo entre efectivamente em vigor, mas também porque isso poderá incentivar a ratificação do acordo ortográfico e do protocolo adicional por parte de outros países ainda em falta. É altura de Portugal assumir as suas responsabilidades e obrigações em relação à língua, sem tergiversações nem duplicidades.
in Público, de 18 de Dezembro de 2007