«Os brasileiros têm um problema, nós não. Isto é um favor que a diplomacia portuguesa está a fazer à brasileira, e é triste que a língua sirva de moeda de troca» Vasco Teixeira, editor português
Passaram-se 17 anos e o Acordo Ortográfico entre os países de língua portuguesa — que, segundo anunciou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, vai ser ratificado até ao final do ano, com uma moratória de dez anos para a entrada em vigor em Portugal — continua tão polémico como sempre.
É «catastrófico no plano científico, económico e geoestratégico», garante o escritor e tradutor Vasco Graça Moura sobre este esforço para aproximar as grafias usadas por um lado por Portugal, os países africanos e Timor da grafia usada pelo Brasil. Resulta de «uma falta de visão estratégica», diz Vasco Teixeira, presidente da Porto Editora. É «bom para todos», defende o escritor José Eduardo Agualusa. É, essencialmente, «uma questão política», afirma o linguista Ivo Castro.
Desde o anúncio de Luís Amado que muitos portugueses se interrogam sobre as razões que levaram a despertar o acordo que parecia adormecido desde 1990. A verdade é que não estava tão adormecido como isso — em 2006 Cabo Verde e São Tomé ratificaram-no, juntando-se assim ao Brasil. Isto significa que já existem as três ratificações necessárias para que o acordo entre em vigor imediatamente nesses países, o que fez aumentar a pressão sobre Portugal para que ratificasse também.
O que farão os africanos?
A grande incógnita depois é o que farão os restantes países — Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Timor-Leste. E não é uma questão secundária. Ivo Castro avisa: «Se Portugal aderir sem previamente se assegurar que os restantes aderem, estará a romper a união ortográfica com Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Timor. Não sei até que ponto isso é compensado pela hipótese de uma união ortográfica com o Brasil.» O linguista está convencido de que «Angola é o país que menos interessado está na ortografia».
Opinião diametralmente oposta é a de Agualusa, que não compreende «a oposição que tem havido em Portugal ao acordo». O escritor angolano, que vive entre Angola, Portugal e o Brasil, acha que «para um país como Angola é muito importante aplicar o acordo, porque este vai fazer aumentar a circulação do livro e facilitar a aprendizagem e a alfabetização, que é, neste momento, a coisa mais premente para Angola e Moçambique». Defendendo que, «se Portugal não quiser o acordo, então Angola deve avançar e Portugal fica isolado», Agualusa mostra-se convencido de que, «se o Brasil avançar, Angola não vai demorar muito tempo».
O mercado do livro escolar
Neste momento, em Angola o processo está a ser estudado pelos ministérios da Educação e Relações Exteriores, após o que terá que ir a Conselho de Ministros e ao Parlamento para aprovação, disse ao PÚBLICO o adido de imprensa da embaixada em Lisboa, Estevão Alberto — informação que confirma que, pelo menos, o acordo não está "adormecido".
Uma das questões centrais de todo este debate é fácil de perceber: os países africanos de língua oficial portuguesa, sobretudo Angola e Moçambique, são importantes mercados para os livros (os escolares, em primeiro lugar), que neste momento são fornecidos por Portugal. Um acordo ortográfico deixaria o Brasil numa situação muito mais favorável para entrar nesses mercados.
Vasco Teixeira, presidente da Porto Editora (que, juntamente com a Texto Editora, fornece a maioria dos manuais escolares a Angola e Moçambique), admite que essa questão é importante, mas julga que «as editoras [portuguesas] nalguns casos até poderão ganhar». Contudo, o que está em causa «não é um problema de negócios», mas sim «uma visão estratégica para a língua portuguesa». E sublinha: «Os brasileiros têm um problema, nós não temos. Isto é um favor que a diplomacia portuguesa está a fazer à brasileira, e é triste que a língua sirva de moeda de troca entre diplomacias.»
O acordo «abre a porta ao Brasil nos países africanos, onde até agora não conseguiram entrar», diz Vasco Graça Moura. «Isto serve para beneficiar a indústria editorial brasileira. Como eles já têm tudo adaptado ao acordo, assim que entrar em vigor avançam imediatamente. Nós já temos uma edição pelas ruas da amargura e vamos ficar com ela pior.» As alterações no Brasil afectam apenas 0,5 por cento das palavras e em Portugal 1,6 por cento.
Aproveitar o Brasil
É tudo uma questão de saber aproveitar as oportunidades, contrapõe Agualusa, para quem o acordo abre a Portugal o mercado brasileiro. «Uma das áreas em que Portugal é muito superior ao Brasil é na dos livros para crianças, só que não investe nisso.» Além disso, «80 por cento dos livros no Brasil ficam no Rio de Janeiro e em São Paulo», o que deixa todo o resto do país de 180 milhões por explorar.
Para ser aprovado, o acordo tem ainda que passar pelo Conselho de Ministros e pelo Parlamento. A ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, disse na terça-feira que o seu ministério, em conjunto com o da Educação, defenderam a moratória de dez anos, que foi aceite pelo MNE, «para proceder à sensibilização dos editores» e preparar a introdução do acordo nas escolas.
Ninguém sabe exactamente (o "Público" pediu essa informação ao Ministério da Educação, mas não recebeu resposta em tempo útil) quando é que o acordo começará a ser aplicado nas escolas, mas a moratória de dez anos visa precisamente evitar os custos da substituição imediata dos manuais escolares.
Mas o que acontecerá, se, de repente, os países que ainda não ratificaram decidirem acelerar o processo e adoptar a nova grafia num prazo mais curto que os dez anos? «Se isso acontecer», disse Pires de Lima, «Portugal reverá a sua posição e procurará ser mais célere.»
in "Público", de 29 de Novembro de 2007