O dr. Vasco Graça Moura e outras pessoas sensatas fizeram o erro de atacar o Acordo Ortográfico luso-brasileiro em pormenor. A essência dessa monstruosidade acabou por se perder numa discussão técnica por que ninguém se interessa e que ninguém consegue seguir. A essência da questão é, no entanto, clara. A ortografia portuguesa e a ortografia brasileira são diferentes, porque a língua portuguesa e a língua brasileira são diferentes: a fonética, a sintaxe, a semântica. O brasileiro evoluiu e continua a evoluir de uma maneira, e o português, de outra. Este processo não vai evidentemente parar e vai reduzir a um triste exercício de futilidade qualquer acordo que os sábios de cá e de lá (e talvez depois de Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné) se lembrem de congeminar.
Compreendo que se olhe com inveja para o inglês que se escreve, com ligeiras variantes, da mesma maneira em metade do mundo. Mas quem inveja esta «universalidade» ao inglês não percebe com certeza em que base ela assenta. Assenta no protestantismo e na tradução da Bíblia de 1611, a King James Bible, que por todo o mundo foi o centro do culto e o livro em que se aprendia a ler. Durante séculos não ocorreu a nenhum cristão a ideia sacrílega de lhe alterar uma letra e esse respeito passou inevitavelmente para a vida profana. De resto, houve sempre uma literatura clássica, de Shakespeare a T. S. Eliot e de Hawthorne a Fiztgerald, que era considerada património comum e em que, por isso mesmo, não se tocava. Apesar da multiplicação de idiomas, ficou até hoje esse ponto de referência. Como sucedeu, em menor grau, com o castelhano.
Ao Acordo Ortográfico luso-brasileiro, planeado com o fim «económico» da «expansão» e da «internacionalização» da língua, falta o fundamento. Não existe uma tradução da Bíblia geralmente reconhecida. Não existe também uma tradição literária comum ou perto disso. Camões, sendo um nacionalista português, não é um autor que se partilhe. Nem António Vieira. Camilo escreveu sobre o Brasil como quem escreve sobre o Porto. E Eça é demasiado indígena, pior ainda, lisboeta. Ao contrário, pouca gente conhece em Portugal Machado de Assis, para já não falar de Guimarães Rosa (um nativista) e de Drummond de Andrade. Sobram Pessoa, uma exportação difícil, e Jorge Amado, que se popularizou pela política. Não chega. O Acordo Ortográfico nasce no ar e morrerá depressa. Como de costume, muito barulho para nada.
in Público de 21 de Março de 2008