«(...) [N]ão há motivo para rejeitar de antemão a voz passiva. O importante, como em toda escolha linguística, é atentar para a pertinência do seu emprego. Redige bem aquele que, imune a interdições preconceituosas, adapta a língua aos seus propósitos expressivos.»
Há manuais de redação que rejeitam o uso da voz passiva. Orientam que se diga, por exemplo, «O diretor suspendeu os alunos», em vez de «Os alunos foram suspensos pelo diretor». Existem casos, no entanto, em que a passiva é desejável. Nem sempre interessa ao redator afirmar que alguém faz alguma coisa. Ele pode querer dizer que alguma coisa “é feita”, destacando o termo que sofre a ação. Afirmar «o livro foi lido em pouco tempo pela turma» não é o mesmo que dizer «a turma leu o livro em pouco tempo». No primeiro caso o foco recai no livro; no segundo, recai na turma.
Segundo Steven Pinker, «muitas vezes o escritor precisa desviar a atenção do leitor para longe do agente de uma ação. A voz passiva lhe dá essa possibilidade» (Guia de escrita, p. 75, Contexto). Por exemplo: «Quem não estiver de farda será proibido de entrar.» Proibido por quem? A passiva é um meio de camuflar o responsável por essa antipática interdição.
O propósito de esconder o agente pode se dever também a modéstia. Na apresentação de uma monografia, o autor tende a escrever: «Um enorme tempo foi gasto para levantar as fontes». A passiva é um meio de ele “disfarçar” que dedicou muito tempo à tarefa. Outra forma seria usar o «plural da modéstia», que também é uma forma de atenuar o egocentrismo (“Gastamos” um tempo enorme para levantar as fontes). Mas nesse caso o foco não mais estaria no tempo despendido.
Omitindo o agente da ação, corre-se o risco de dar ao leitor uma falsa ideia de quem a pratica. É o que ocorre nesta passagem da redação de um aluno: «No texto Cortina de Burrice, de Cláudio de Moura e Castro, é feita uma comparação entre a sociedade brasileira e a europeia.»
O estudante dá a entender que a comparação entre a sociedade brasileira e a europeia é feita por outra pessoa, e não pelo próprio Cláudio de Moura e Castro. Ele não correria esse risco se tivesse optado pela voz ativa: «No texto Cortina de Burrice, Cláudio de Moura e Castro faz uma comparação entre a sociedade brasileira e a europeia.»
Vale a pena lembrar que a manutenção da voz concorre para a unidade do texto. Se a voz ativa aparece na primeira oração, é desejável que também apareça na(s) seguinte(s). O efeito é muito ruim quando isso não ocorre. Veja: «Os bandidos destruíram as evidências do crime e novas provas foram forjadas.» Se o sujeito é o mesmo (os bandidos), por que mudar a voz? É mais prático e direto dizer: «Os bandidos destruíram as evidências do crime e forjaram novas provas.»
A voz passiva analítica (feita com verbo auxiliar) deve ser usada com parcimônia. Seu exagero tende a dificultar a leitura devido ao excesso de locuções. O prejuízo para o estilo é grande. Confira neste exemplo: «Foi feita» uma pesquisa para sondar a preferência dos homens quanto às mulheres com quem gostariam de «ser casados». «Foram rejeitadas» por grande parte deles as liberais, as muito bonitas e as que já tinham filhos de outros casamentos.
O ideal, em casos como esse, é optar pela voz passiva sintética (com o pronome “se”) ou pela voz ativa, em que é natural a ordem direta. O texto melhora muito com as modificações: «Fez-se» uma pesquisa para sondar a preferência dos homens quanto às mulheres com quem gostariam de «se casar». Grande parte deles “rejeitou” as liberais, as muito bonitas e as que já tinham filhos de outros casamentos.
Antes de encerrar estas notas, chamo a atenção para uma escolha bizarra que por vezes aparece nas redações. Trata-se de uma espécie de cruzamento entre a voz passiva analítica e a sintética. Pincei de outro aluno este exemplo: «Não é novidade dizer que no Brasil não se é cumprida as leis ambientais.» «Não se é cumprida»? Isso não existe em português. O aluno deveria dizer que as leis ou «não são cumpridas», ou «não se cumprem».
Como se vê, não há motivo para rejeitar de antemão a voz passiva. O importante, como em toda escolha linguística, é atentar para a pertinência do seu emprego. Redige bem aquele que, imune a interdições preconceituosas, adapta a língua aos seus propósitos expressivos.
Texto publicado originalmente no Facebook Língua e Tradição no dia 27 de setembro de 2020.