A propósito dos diferentes pontos à volta da questão apresentada pela professora Isabel Santiago sobre a função sintática do pronome se na frase «Diz-se que o João é bom aluno?», fica em linha também este texto de Maria Regina Rocha.
Na oração «Diz-se que o João é bom aluno», o «se» é uma partícula apassivante (nomenclatura tradicional), também chamado «clítico se passivo», e, portanto, a oração «que o João é bom aluno» desempenha a função sintática de sujeito.
Repare-se que, se se transformasse a frase substituindo a oração por um grupo nominal não oracional, não haveria dúvidas de que aquele sintagma era o sujeito, pois verificar-se-ia que ele controla a concordância verbal: «Diz-se muita coisa.»; «Dizem-se muitas mentiras.»; «Dizem-se os maiores disparates».
Com outros exemplos, talvez a situação fique ainda mais clara (as orações sublinhadas que se seguem desempenham a função de sujeito da oração inicial):
«Aceitam-se sugestões.» — «Aceita-se que dêem sugestões.»;
«Verificaram-se irregularidades no funcionamento da instituição.» — Verificou-se que a instituição não funciona bem.»;
«Contrataram-se três empregados.» — «Contrataram-se os mais capazes.» — «Contratou-se quem tinha um bom currículo».
Quanto à classificação do pronome «se» como sujeito, em rigor, este pronome não é sujeito, nem mesmo nas construções impessoais. Em português, o sujeito só é materializável por um pronome em nominativo. Será de lembrar que, enquanto no latim, na maior parte das orações infinitivas, o sujeito ia para o acusativo (exceção feita às introduzidas por certos verbos na passiva, em que o sujeito da infinitiva passava, em nominativo, a sujeito do verbo passivo), tal não acontece em português. Em português, o sujeito, quando pronome, fica no nominativo.
O «se» das construções impessoais («Errou-se ao subestimar o adversário.»; «Dorme-se bem nesta cama»; «Hoje lê-se pouco.») não é verdadeiramente um sujeito, pois nestas orações o sujeito é indeterminado, mas um «marcador de indefinição do sujeito» (designação do Dicionário Terminológico) ou «índice de indeterminação do sujeito» (Bechara, p. 178) ou, ainda, «símbolo de indeterminação do sujeito» (Celso Cunha e Lindley Cintra, p. 308).
Quando às restantes frases, convém clarificar em que sentido se usam os termos predicado, predicativo do sujeito e predicativo do complemento direto bem como os de oração desenvolvida (e respetivos termos) e oração reduzida (de infinitivo). Este último aspeto é importante: ficará tudo mais claro se analisarmos bem quais os termos da oração desenvolvida (a que tem o verbo na forma finita, sendo a infinitiva uma subunidade dessa oração) e quais os da infinitiva, considerando que a infinitiva tem estatuto de oração à parte.
Assim, tornemos consensual que o predicado tem como núcleo o verbo, podendo ser constituído apenas por este elemento ou, ainda, pelo predicativo do sujeito ou pelos complementos e modificadores do verbo, que o predicativo do sujeito é um termo pedido por verbos copulativos e que caracteriza o sujeito, e que o predicativo do complemento direto é um termo pedido por um verbo transitivo predicativo, que exige não só um complemento direto como um termo que predica esse complemento direto, preenchendo o significado total do verbo.
Uma palavra especial sobre os verbos transitivos predicativos: são verbos cuja regência exige a simultaneidade de complemento direto e predicativo do complemento direto, pelo que o seu significado só fica completo com ambos os termos (cf., por exemplo, Joaquim Fonseca, «Predicação do Complemento Directo em Português», in Máthesis, 2, 1993, pp. 47-68).
Sob o ponto de vista semântico, podemos, genericamente, agrupar estes verbos em três grupos: (1) verbos de opinião ou de perceção (física ou intelectual); (2) verbos que exprimem um ato de vontade; (3) verbos causativos.
Exemplos do 1.º grupo (de opinião ou de perceção, física ou intelectual): considerar (considero-o bom rapaz); achar (achei o problema difícil); declarar (declaro-o vencedor); julgar (julgo-o capaz disso); ver (vejo-o triste); saber (sabia-te formado); sentir (sentia-te distante); imaginar (imagino-me avó).
Exemplos de verbos do 2.º grupo (que exprimem vontade): querer (quero a sala limpa); desejar (desejo-o longe de mim); preferir (prefiro-o calado).
Exemplos de verbos do 3.º grupo (causativos): eleger (elegeram-no presidente do clube); manter (mantenho-o como meu adjunto); nomear (nomeou-a sua consultora); apelidar (apelidou-o de seu amado discípulo); designar (designou-o seu ajudante).
Posto isto, passemos, então, à análise das dez frases em causa não só na sua globalidade como isolando a oração reduzida (de infinitivo), quando existir.
1. Frases com uma oração desenvolvida e uma reduzida.
1.ª O João declarou-se capaz de falar em público.
a) Análise global:
O João – sujeito.
declarou-se capaz de falar em público – predicado;
se – complemento direto;
capaz de falar em público – predicativo do complemento direto;
de falar em público – complemento do adjetivo capaz.
b) Análise da oração reduzida (de infinitivo) de falar em público:
Sujeito subentendido (ele, referente a João);
Predicado – falar em público.
Nota: O pronome «se» aqui não poderia ser sujeito de «falar em público», pois não pertence materialmente a essa oração infinitiva (nem é um pronome em forma nominativa).
2.ª O João declarou o Jaime capaz de falar em público.
Sob o ponto de vista semântico, o verbo declarar aqui não é o mais feliz, sendo preferível, por exemplo, considerar.
O João considerou o Jaime capaz de falar em público..
a) Análise global:
O João – sujeito;
considerou o Jaime capaz de falar em público – predicado;
o Jaime – complemento direto;
capaz de falar em público – predicativo do complemento direto;
de falar em público – complemento do adjetivo capaz.
b) Análise da oração reduzida (de infinitivo) de falar em público:
Sujeito subentendido (ele, referente a Jaime);
Predicado – falar em público.
Nota: O termo «o Jaime» não é sujeito de «falar em público», pois não pertence materialmente a essa oração infinitiva.
2. Construções de União de Orações com verbos causativos.
Em relação às duas frases que se seguem, parece pertinente observar as perspectivas de Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, 37.ª ed., pp. 431-433 e 530-531) e de Inês Duarte (Gramática da Língua Portuguesa, de Maria Helena Mira Mateus et al., 6.ª ed., pp. 647-649)..
Bechara considera que certos verbos podem pedir um complemento direto e um outro termo com um verbo no infinitivo que desempenha a função de predicativo do complemento direto («Eu a vi sair de casa.»; «Ouvimos a sineta chamar os alunos.»; «O professor mandou o aluno saltar. / O professor mandou-o saltar.»; «O professor mandou o aluno fazer o exercício.» – pp. 530-531) .
Já na acima referida Gramática da Língua Portuguesa, Inês Duarte analisa a situação em que verbos causativos e percetivos selecionam complementos infinitivos não flexionados, considerando que esses verbos se combinam com o verbo encaixado, formando um predicado complexo e que «o constituinte interpretado como sujeito do domínio encaixado ocorre como objeto direto do predicado complexo se o verbo encaixado for mono-argumental [“O professor mandou-os entrar.”] e como objecto indireto do predicado complexo quando o verbo encaixado é transitivo [“O professor mandou-lhe concluir o trabalho.”] » (p. 648). A linguista chamou a esta construção «União de Orações».
Esta última análise contempla o facto de ser consensual que o predicativo do complemento direto se materialize num grupo nominal («O Pedro nomeou-o seu assistente.»), num adjectival («Todos consideram a Ana inteligente.») ou num preposicional («Ele considerou o produto sem aceitação no nosso mercado.»), mas não num grupo verbal.
Passemos, então, às duas frases que contêm predicado complexo.
3.ª Ele deixou-se ficar ao relento.
Segundo Bechara, teríamos aqui uma oração com o termo «se» como complemento direto e «ficar ao relento» como predicativo do complemento direto. Seguindo a perspetiva de Inês Duarte, a análise seria a seguinte:
Ele – sujeito;
deixou-se ficar ao relento – predicado (predicado complexo – deixar-se ficar);
se – complemento direto.
4.ª Ela mandou-o atender ao pedido.
Esta frase é muito interessante, pois trata-se de uma construção que foge à norma.
Segundo Bechara, teríamos aqui uma oração com o termo «o» como complemento direto e «atender ao pedido» como predicativo do complemento direto, contendo este predicativo o termo «ao pedido», que é o complemento directo do verbo «atender», um caso particular de complemento direto preposicionado (como «amar a Deus»)..
Seguindo a perspetiva de Inês Duarte, temos aqui um predicado complexo («mandar atender») em que o verbo superior tem um complemento direto («o») e o verbo encaixado é transitivo (tem como complemento direto «ao pedido»). Assim, tendo esse verbo encaixado um complemento direto («ao pedido») e tendo o verbo superior também um complemento direto («o»), considerando o acima referido na gramática desta linguística, a frase deveria ser construída da seguinte forma:
Ela mandou-lhe atender o pedido.
Ela – sujeito;
mandou-lhe atender o pedido – predicado (predicado complexo: mandou atender);
lhe – complemento indireto;
o pedido – complemento direto.
Esta construção frásica já respeita a norma. Se criarmos uma interrogativa com os mesmos termos e dermos a resposta, talvez se compreenda melhor: pergunta — «O que é que ela lhe mandou fazer?» (e não *«O que é que ela o mandou fazer?»); resposta — «Ela mandou-lhe atender o pedido».
Nota: Seja qual for a perspetiva de análise, considero que o pronome «o» nunca é sujeito de «atender ao pedido», pois não pertence materialmente a essa oração infinitiva, nem está na forma nominativa.
Não me parece feliz a opção feita por Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, p. 303) de atribuir ao pronome átono «o» a função de sujeito de um infinitivo, em oposição à própria distinção que na mesma gramática se faz (p. 279) entre pronomes «retos» e «oblíquos» precisamente quanto à função que desempenham (de sujeito ou de complemento). Aliás, essa forma acusativa do pronome indica que ele é complemento directo de um qualquer verbo. E, ao sê-lo, ao desempenhar a função de complemento directo, já não poderá desempenhar outra.
3. Frases apenas com uma oração.
Partindo do princípio de que uma oração reduzida ligada a outra tem de ter um verbo (no infinitivo, no gerúndio ou no particípio) e que, se o não tiver, não é uma oração, mas um termo de oração, as frases que se seguem apenas têm uma oração.
5.ª O conservador declarou-os marido e mulher.
O conservador – sujeito;
declarou-os marido e mulher – predicado;
os – complemento direto;
marido e mulher – predicativo do complemento direto.
Nota: É transcender a análise sintática conceber a existência elíptica do verbo «ser» antes de «marido e mulher» e considerar esse termo uma oração reduzida.
6.ª O réu declarou-se inocente.
O réu – sujeito;
declarou-se inocente – predicado;
se – complemento direto;
inocente – predicativo do complemento direto.
7.ª O João declarou-se o rei da noite.
O João – sujeito;
declarou-se o rei da noite – predicado;
se – complemento direto;
o rei da noite – predicativo do complemento direto.
8.ª O Pedro declarou-se à Joana.
O Pedro – sujeito;
declarou-se à Joana – predicado;
à Joana – complemento indireto.
Nota: Nesta frase o pronome «se» associado ao verbo «declarar» é inerente ao verbo. «Declarar-se» no sentido de «declarar o seu amor», «manifestar o seu amor» é um verbo que exige como parte integrante o pronome «se», que lhe é inerente, não admitindo outro pronome nem a sua substituição por um nome.
9.ª O João fingiu-se cantor do fado de Coimbra.
O João – sujeito;
fingiu-se cantor de fado de Coimbra – predicado;
cantor de fado de Coimbra – predicativo do sujeito.
Nota: Nesta frase o pronome «se» associado ao verbo «fingir» é inerente ao verbo. «Fingir-se», com o significado de «querer passar pelo que não é», torna-se um verbo copulativo, exigindo um predicativo (exemplo: «fingiu-se doente»).
10.ª A Joana, mesmo coxa, foi as aulas.
A Joana – sujeito;
mesmo coxa – modificador;
foi às aulas – predicado;
às aulas – complemento oblíquo (na gramática do Brasil, complemento relativo).
Nota: O termo «mesmo coxa» não é um predicativo do sujeito, pois não está dependente de nenhum verbo copulativo: o termo não contém nenhum verbo. Trata-se de um modificador, uma informação acessória, cuja eventual supressão não torna a frase agramatical.
Em suma, conquanto a semântica seja fundamental para qualquer análise sintática, em sintaxe só podemos analisar a frase tal como ela está construída, rigorosamente com aquelas palavras e naquela ordem, e não como a interpretamos semanticamente. É clássico lembrar que as frases «Eu leio o livro.» e «O livro é lido por mim.» significam o mesmo, mas que os seus termos desempenham diferentes funções sintáticas.
Cf. O se das construções impessoais reflexas+ A construção impessoal reflexa + A construção impessoal reflexa (II) + A construção impessoal reflexa (III) + Quando "se" é, inequivocamente, um pronome pessoal reflexo com a função de complemento direto