PRECISÕES INICIAIS:
1. O novo acordo ortográfico designa-se por acordo de 1990, data de assinatura de todos os países que o subscreveram, e não erroneamente de 1991, data da ratificação inicial de Portugal. Compreende-se que assim seja, para unificar o título; caso contrário, poderia ter diferentes designações no universo da língua, consoante a data das ratificações dos diversos países.
2. No Preâmbulo do acordo, estava escrito que só entraria em vigor em 1994 (quatro anos depois). Umas das condições era que estivessem depositados os instrumentos de ratificação nessa altura. Caso isto fosse satisfeito antes, não estava previsto que a entrada em vigor se antecipasse. Esta moratória de quatro anos é, assim, equivalente à que Portugal estabeleceu agora, para o nosso país, de seis anos. O facto de quatro países terem já ratificado o II Protocolo, incluindo Portugal, não nos obriga a considerar que o acordo já entrou em vigor entre nós. Entrará daqui a seis anos, numa altura que o Estado português estabelecer. Entrará em vigor nos outros países quando entenderem.
3. Estava previsto no Preâmbulo que, dois anos antes da data de entrada em vigor do acordo, fosse publicado um «vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível» (sic, adiante designado por Vocabulário Comum). Assim, considerando o horizonte actual de seis anos para Portugal, teríamos nós o prazo de quatro anos para que em princípio pudéssemos dispor desse Vocabulário Comum.
CONSIDERAÇÕES
Questão 1
Como já referi em anterior artigo, este não é o acordo que eu desejaria, pois preferiria um ainda mais simplificado e com maior univocidade. Diz-se que, com este acordo, não houve coragem para mais; coragem que, por exemplo, existiu na profunda Reforma de 1911, embalada na revolução política de 1910. A verdade também é que os acordos linguísticos entre países não são nada fáceis, dada a necessidade de cedências aos hábitos de escrita de cada um.
Este acordo foi a unificação fraca possível (com cedências de Portugal e do Brasil). Temos de o encarar não como uma obra absolutamente perfeita, mas como um resultado que nos permite passar a ter um único dicionário e uma grafia sempre legal na língua, quaisquer que sejam as variantes usadas no seu universo.
Questão 2
2.1. É indispensável estabelecer estratégia para o procedimento na escrita dos portugueses neste prazo intermédio. Caso contrário, à última hora aparecerão sempre pessoas a dizer que é preciso mais tempo (como aconteceu na iminência desta assinatura, depois de mais de 17 anos de espera…). Aguardamos que os responsáveis nos esclareçam. Prometem que se tomarão as medidas adequadas para a entrada em vigor plenamente do acordo passados estes 6 anos, mas não bastam as intenções expressas em palavras: é preciso acção.
Num ponto de vista meramente pessoal, lanço para meditação as ideias seguintes:
2.2. Deve-se empreender um amplo esclarecimento sobre as mudanças a esperar na escrita. O objectivo é sossegar as pessoas inquietas, com receio de não saberem escrever depois. O meu artigo em «WWW.dsilvasfilho.com > Linguística > Problemas ortográficos» dá uma ajuda; mas é preciso não esquecer que nem toda a gente tem acesso à Internet. A comunicação social tem neste caso mais uma missão nobre a cumprir.
2.3 É recomendável não se ser muito apressado agora na utilização da nova escrita, para evitar que se estabeleça uma confusão inaceitável.
Obviamente que nos textos oficiais, nomeadamente nos do “Diário da República”, só deve aparecer a nova ortografia a partir do dia em que o novo acordo entrar oficialmente em vigor. Não faz sentido `oficialmente´ usar uma ortografia ainda `não oficial´. Claro que os instrumentos e a preparação deverão ser bem planificados, para que a transição nessa altura se faça sem sobressaltos.
2.4 Também não me parece aceitável que a comunicação social dispare a escrever no novo acordo. A grafia normalizada no nosso país continua a ser a de 1945. Poderá, é facto, multiplicar os artigos em que mostre e habitue os seus leitores às diferenças, (que, aliás, não são muitas). Uma hipótese é a que neste artigo se utilizou: foi escrito todo o texto na grafia ainda em vigor, e, no fim do artigo, está indicada a nova grafia das palavras que irão ser alteradas.
2.5 Nas escolas, contudo, põe-se imediatamente o problema. A missão da escola é preparar os formandos para a vida que irão viver (objectivo frequentemente esquecido em especulações excessivas, depois sem utilização prática). Faz algum sentido que daqui a seis anos os actuais formandos caiam repentinamente numa nova forma de escrever para que a escola não os preparou? Mesmo no decurso da formação, quando avançarem nos estudos, é necessário que vão sendo industriados para a mudança que irão encontrar na própria escola.
Esperemos que os responsáveis pelo ensino tenham presente este problema, em particular no caso dos obreiros dos textos didácticos, dicionários e manuais escolares. Assim que houver um vocabulário actualizado português para o novo acordo, penso que os manuais deverão considerar a formação em paralelo para a nova ortografia. Haverá uma fase em que a formação será certamente `biortográfica´. Note-se que adoptei este termo (como também dizemos formação bilinguística) para o distinguir da designação “dupla grafia”, usada para os casos em que o novo acordo admite duas soluções gráficas para a mesma palavra.
Uma professora experiente do Ensino Básico, com quem falei, disse-me que o mais natural era que nos primórdios da escrita se ensinasse desde já a nova grafia, porque era mais simples (ex.: acção e óptimo sem as consoantes mudas). Espera-se, porém, que haja bom senso, evoluindo gradualmente o ensino de acordo com o que for aparecendo nos manuais escolares. Lembra-se que sem uma base legal de referência, há o risco de se imaginarem grafias para o novo acordo que depois não serão válidas (ver, por exemplo, 3.4); e que há consoantes mudas que embora em Portugal não se pronunciem, continuam a ser legais por se pronunciarem no Brasil (exemplo concepção), nada nos obrigando no novo acordo a substituí-las na nossa escrita, quando nele é aceite a dupla grafia. Resumindo, a pressa pode ser até `deformativa´, se a transição não for feita com prudência.
2.6 Na literatura, em geral, a mudança será provavelmente mais difícil. Muitos anos depois da Reforma de 1911 ainda havia escritores que não obedeciam à nova escrita (houve quem argumentasse que `farmácia´ sem o ph nem parecia uma farmácia…). É de esperar que alguns dos actuais consagrados escritores prefiram continuar a ser publicados na norma de 1945 (por exemplo, uma desculpa pode ser a de que a actual grafia das sequências consonânticas, respeitando a etimologia, obedece mais à história das palavras do que a do novo acordo).
Uma editora importante portuguesa pensa que a transição na literatura em geral excederá os seis anos.
QUESTÃO 3
3.1 Algumas pessoas minimizam a necessidade de publicação prévia do Vocabulário Comum. Dizem, por exemplo, que se refere só à terminologia científica e técnica e não ao léxico geral. Ora não é esse o meu ponto de vista. Aliás, por um lado, mesmo nessa interpretação restrita, a designação pode ser muitíssimo abrangente, pois na ciência da língua todos os termos são objecto de estudo científico; por outro, um dos especialistas que colaboraram no estudo do acordo de 1990 designa este vocabulário por «amplo Vocabulário Ortográfico Unificado» e esta designação não deixa dúvidas de que se trata dum vocabulário completo.
Penso que a publicação prévia do Vocabulário Comum é absolutamente indispensável por vários motivos:
3.2 Para que haja a certeza sobre a grafia futura de algumas palavras em que há dúvidas (ex.: comummente/comumente, eletroíman/eletroímã, hífenes/hifens, etc., etc.): adopta-se um só termo ou a dupla grafia?
3.3 O vocabulário comum é necessário para a elaboração dos correctores de texto, na escrita com o computador. Note-se que, quanto aos correctores ortográficos, não me admira nada que rapidamente apareçam programas brasileiros para o novo acordo. Ora estes correctores específicos para o Brasil poderão não ser satisfatórios para Portugal, se não incluírem todas as duplas grafias que o novo acordo também aceita. Os programas elaborados no Brasil poderão estar dirigidos só para este país, com a variante nele usual. Para que um corrector ortográfico seja verda-deiramente planetário na `comum língua´ portuguesa, deve incluir todas as novas variantes legais no universo da língua (por exemplo, até nomes com as letras que passam a ser consideradas legais nas palavras portuguesas: w, y, z, assunto com interesse para os nossos irmãos na língua, dos PALOP).
Os dicionários que apareceram muito recentemente, ditos “conforme o novo acordo ortográfico” são uma ajuda; mas, sem o Vocabulário comum, não há garantia de uniformização noutros lexicógrafos. Aproveito o ensejo para sublinhar que o projecto do «Prontuário» da minha autoria, publicado pela Texto Editores, é independente do projecto destes novos dicionários da editora, projecto que desconhecia até à altura da publicação dos dicionários. O dicionário médio, de 125 000 entradas, gentilmente posto à minha disposição, já me foi útil como termo de comparação com os meus próprios registos de termos do novo acordo.
3.4 O texto do acordo de 1990, se é absolutamente esclarecedor nalgumas indicações (exemplo a queda ou a variação nos acentos), é muito vago noutras. Por exemplo, na obs. do 1.ª da Base XV, onde se prevê “paraquedista”, podem surgir lexicógrafos com propostas díspares: “rodaviva” (azáfama) / roda-viva; “ervadoce” (anis) / erva-doce; “ferrovelho” (loja) /ferro-velho, etc., etc. Ou, na b) do 2.º da base XVI propostas como “intraocular” / intra-ocular mantida para evitar o eventual retorno sobre a fonia (¦â-ò¦ e não incorrectamente ¦âu¦).
3.5 Volta a lembrar-se que o Brasil dispõe já de um Vocabulário actualizado de 350 000 entradas (Academia Brasileira de Letras, 1998) e que o equivalente da Academia das Ciências de Lisboa é de 1940, desactualizado. Sem o Vocabulário Comum, ou, pelo menos sem um vocabulário português equivalente ao da ABL, o que vai acontecer é que há o risco de na lusofonia o Vocabulário brasileiro passar a ser a base do Vocabulário Comum (ou mesmo o único...). É muito fácil para o Brasil converter o seu Vocabulário num muito próximo do comum, pois lhe basta alterar sinais gráficos e poucas sequências consonânticas (muitas variantes do novo acordo já figuram previdentemente no vocabulário da ABL). Então, teremos correctores ortográficos que poderão não ser lá muito fiéis ao português europeu, mesmo feitos em Portugal.
Mais grave ainda, sendo uma das vantagens do novo acordo a existência de um dicionário também comum, para toda a lusofonia, este pode vir a ser, por antecipação, o brasileiro, dado ser então o único disponível. Ora esta eventualidade pode implicar que este Dicionário Comum não esteja completo com as variantes do português europeu actualizado, ou esteja imperfeito em relação à vernaculidade desejada pela nossa Academia para essas variantes. Aqui está um aspecto em que as editoras portuguesas se poderão unir para exigir do Governo providências para que Portugal tenha mais cuidado e estima pela sua língua, promovendo muito rapidamente a elaboração oficial (missão da Academia das Ciências de Lisboa?) do “vocabulário actualizado do português europeu”, para que seja possível os especialistas dos países signatários estabelecerem o Vocabulário Comum, verdadeiramente planetário.
Permito-me lembrar que quem tem a coragem da acção não se desculpa com o facto de os meios serem escassos.
CONCLUSÃO
Não tenhamos ilusões. As pessoas que se opuseram à assinatura do Protocolo e ao novo acordo não vão ficar caladas. Descobrirão mais várias objecções à nova ortografia e poderão mesmo continuar a acusar de incompetentes os linguistas que o elaboraram, neste desaforo com que os estudiosos da língua são tratados pelos seus pares. Poderão arranjar maneira de o Vocabulário Comum não ser feito, e, logo, haver um pretexto para adiamentos.
Talvez confiem que, num partido com outra cor política no Governo, o prazo de adaptação acabe por se prolongar indefinidamente, no hábito (neste país como digo sempre: `do nosso descontentamento e que poderia ser do nosso orgulho…´) no hábito que existe de os partidos quando assumem o Governo mudarem logo o que foi feito pelo partido anterior, sem muitas vezes aproveitarem o que ficou de positivo; e voltando então tudo à estaca zero, com perda absurda de tempo e meios.
Quem mantém a esperança de que o acordo de 1990 nunca entre em vigor, deve lembrar-se, porém, que esta questão já não faz parte das tricas políticas internas, mas envolve o prestígio da língua portuguesa no mundo; e que, não obstante o seu descontentamento com a má política, o povo sabe bem que tem estadistas com a coragem necessária para impor que se cumpram os acordos internacionais do país.
Termos do novo acordo.
No texto acima, as palavras estão em itálico quando alteram só para Portugal e sublinhadas quando só para o Brasil (em itálico e sublinhado quando alteram para ambos os países). Nas duplas grafias, quando uma das alternativas corresponde ao uso na norma em vigor presentemente num país, pode não haver mudança na escrita futuramente, pois o novo acordo permite a escolha, como se disse atrás. Claro que é sempre conveniente usar num dado país a variante nele usual (exem-plo: em Portugal escrever facto e não o brasileiro fato, pois se o contexto não for esclarecedor pode haver confusão). A verdade, porém, é que, nas duplas grafias do novo acordo, ambas serão legais, e, para qualquer delas, se poderá considerar que não há erro, nessa então `comum língua portuguesa´.
Para Portugal será: atual/ais, objetivo, didáticos, atualizado, objeto, corretor/es, projeto, incorretamente, desatualizado, ação, objeções, adotei, adota-se.
Para o Brasil será: linguístico/s, ideias, linguista, frequentemente, bilinguística, sequências.
texto inserto na página pessoal do autor