Na década de 1770, o Marquês de Pombal pediu aos censores do rei que tomassem uma decisão entre as várias propostas de ortografia que então surgiam — a de Luís António Verney, a de António José dos Reis Lobato e a de João Pinheiro Freire da Cunha, entre outras — para que a coroa a pudesse utilizar nos seus documentos oficiais. Depois de dois anos em discussão, os censores discordavam de quase tudo e baixaram os braços.
Havia apenas uma decisão tomada: uma vez que a letra y não tem, em português, uma pronúncia diferente da letra i, poderia com vantagem ser abolida. Até que alguém se lembrou: não podemos! Não podemos, porque el-rey se escreve com ípsilon... e sua majestade «assim escreve na sua real firma».
E ora aí está como nem o Marquês de Pombal, no auge da monarquia absoluta, conseguiu chegar a um acordo ortográfico. E porquê? Por causa de alguma dificuldade intrínseca à língua? Não — por causa de uma dificuldade política.
A dificuldade política era esta: colocados perante uma decisão, os decisores mal chegaram a perguntar-se o que podia fazer-se, porque estavam obcecados com o que não se podia fazer. A obsessão com o que não se pode fazer, em Portugal em geral e em particular, ganha sempre à ideia do que se pode fazer.
Por esse mundo fora, as universidades correm para abrir departamentos de inglês e, também, de espanhol. Quanto aos departamentos de português, temos de pedinchar para abrirem novos e rezar para não fecharem os que existem. Mas não lhes facilitamos a vida: o professor brasileiro vai ensinar na aula da manhã que o professor português, na aula da tarde, está errado — e vice-versa.
O Instituto Cervantes, tal como a Alliance Française, tem meios ao seu dispor com que o Instituto Camões só pode sonhar. Mas se um dia quiséssemos juntar dinheiro e esforços com os brasileiros para tentar dar um pouco mais de luta, a primeira pergunta seria: sim, mas em que ortografia?
Passei os últimos dias no "Letras em Lisboa", a versão portuguesa do excelente Fórum das Letras de Ouro Preto. Como é natural, toda a gente — portugueses, brasileiros e africanos — se entendeu perfeitamente. Mas se os respectivos governos quisessem emitir um comunicado sobre o evento, teriam de emitir dois comunicados — um em cada ortografia.
Com esses dois comunicados oficiais, dirigir-nos-íamos às Nações Unidas para pedir que o português fosse língua de trabalho, com duplicação de custos, incerteza sobre a norma a utilizar e mais trabalho em geral. Para quê fazer fácil, quando se pode fazer difícil?
Como em 1770, estamos obcecados com o que não podemos fazer. Os brasileiros não podem perder o trema em lingüiça, com medo de não saber pronunciar a palavra e morrerem à fome. E os portugueses não podem perder as consoantes mudas, para saberem que têm de abrir a vogal anterior. Porém, mostrem-me um português que pronuncie actividade com a primeira vogal aberta, e eu mostrar-lhes-ei dez que pronunciam "âtividade".
E, por último, temos Vasco Graça Moura prevendo que as famílias portuguesas terão de inutilizar milhares de livros quando o acordo for aprovado. Quero daqui lançar um apelo público a Vasco Graça Moura: não deite no lixo os seus livros na velha ortografia quando ela caducar. Não deite fora os seus livros oitocentistas que escrevem pharmacia com ph, nem os setecentistas que escrevem el-rey com ípsilon. Não lance esses livros no lixo: ofereça-mos.
in Público do dia 14 de Abril de 2008