Artigo disponível na página pessoal do autor, onde volta a insurgir-se contra a "apressada" entrada em vigor do Acordo Ortográfico, em Portugal.
Estava previsto que haveria uma reunião de especialistas dos países signatários do Acordo de 1990 para que se estabelecesse um Vocabulário Comum científico, antes de o novo Acordo Ortográfico (AO) entrar em vigor. Portugal esteve este tempo todo, desde 1990, sem se decidir a fazer um vocabulário para o novo AO, e a Academia Brasileira de Letras (ABL) resolveu avançar sozinha com o seu Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), para o novo AO, adequado ao português brasileiro (PB). Prudentemente, cingiu-se à tradição e seguiu praticamente o texto do Acordo de 1990, para ter garantias de que depois não se afastaria muito de um VOLP elaborado em Portugal.
Agora um VOLP, para o novo AO, adequado ao português europeu, VOLP PE, está sujeito às mesmas contingências, de respeitar a tradição e de não diferir do texto do Acordo de 1990, para não se afastar muito do VOLP PB.
O facto de termos ficado imóveis na língua desde 1970 (enquanto o Brasil foi fazendo sucessivos vocabulários actualizados) não justifica a pressa que tem havido agora em Portugal, da parte dos responsáveis, em pôr o novo AO em vigor, pois foi estabelecida uma moratória de seis anos para esse efeito. Tal moratória, no senso comum, penso que se destinava não só à adaptação do público à nova grafia, mas também que havia o sentimento de ela ser indispensável para estabelecer as bases necessárias para a implantação do Acordo.
Um VOLP PE oficial deve ser prestigiante, para que todos fiquemos não tão feridos na auto-estima (como ficámos com o VOLP PB) e com ideias mais claras na aplicação do novo AO. Além disso, o senso comum aconselha também que o novo AO entre em vigor em Portugal só em concertação com as escolas (como fez o Brasil), o que exige um prazo razoável para as editoras elaborarem os manuais.
Um novo vocabulário oficial para o português europeu deveria dispor de tempo para maturação suficiente e para ser bem ponderado nas nossas especificidades e debatido entre linguistas competentes e sensatos. Deveria, inclusivamente, prever já (sugerindo soluções) que uma comissão de especialistas dos países de língua oficial portuguesa, encarregada de elaborar o VOLP para um dicionário comum (DC), pode vir a aproveitar a oportunidade de corrigir erros do texto de 1990, de simplificar mais a língua e de esclarecer bem o uso das duplas grafias. Repare-se que o início do projecto de 1990 já tem mais de 25 anos.
Eliminação de erros
Encontram-se várias incoerências e distracções no texto do Acordo de 1990 (Todos-os-Santos e Todos os Santos, bençao, jibóia, amigdalóide, fémea, diagra-mas, primo-infeção, e até erros técnicos, como na Base X).
Simplificações e sistematizações,
por exemplo nos hífenes
As regras do hífen vão continuar caóticas, não obstante o novo AO (bem modesto na inovação em relação ao projecto de 1986, que aglutinava ou generalizava a grafia sem o hífen quando este é dispensável).
Citam-se casos presentes que poderão continuar a aparecer no futuro:
Vamos ter cor-de-rosa, por haver rosas de várias cores, mas cor de vinho para vinho tinto, não obstante também haver várias tonalidades no vinho;
Nada impede o que se verifica presentemente: um mesmo dicionário responsável grafa: radio-despertador (com hífen) e radiogravador (sem ele);
Poderemos continuar a ter segunda mão sem hífenes (um composto em sentido figurado), mesmo aplicado, por exemplo, a sapatos;
Continuamos a ter alta-fidelidade, um mero composto AN, onde o hífen respeita só a tradição;
Continuaremos com azul-escuro (no qual podem existir vários tons de azul) embora o composto não tenha o sentido de uma cor única como, por exemplo, azul-celeste; etc.
Uso das duplas grafias
O novo AO, parecendo muito inovador, deixa várias questões em aberto. Não diz que, enquanto não houver um VOLP DC, é recomendável não utilizar numa comunidade linguística grafias usuais só noutras comunidades, pois não existe na língua documento de suporte para essa mistura. Não é por o Brasil escrever comumente, conosco e hifens que em Portugal se pode escrever já assim, com desculpa no novo AO (no VOLP PB não estão, por exemplo, as variantes portuguesas ém/én, óm/ón das proparoxítonas, formas com estes acentos desaconselhadas no Brasil, bem como desaconselhadas em Portugal as formas com acento circunflexo).
O problema agudiza-se nas consoantes mudas. Há uma série de palavras nas quais o VOLP PB regista, na sequência consonântica, a consoante que será muda em Portugal e, por isso, a vai perder no VOLP PE (ex.: acepção, afecto, apopléctico, céptico, coarctar, concepção, contracepção, epiléptico, espectro, excepcional, infecção, interceptar, percepção, prospectivo, recepção etc., etc.). Então, o senso comum pergunta: É aceitável ser-nos recomendado, agora, Portugal deixar de usar as consoantes mudas nestas palavras com o novo AO, se vamos ser autorizados a usá-las de pleno direito quando houver uma grafia universal válida, objectivo do acordo de 1990? A conclusão lógica é que estas formas não devem aparecer agora num VOLP PE só como variantes brasileiras, mas já como variantes também portuguesas.
Podem surgir documentos com a pretensão de terem valor para toda a lusofonia, mas esta validade tem de ser confirmada oficialmente. Um documento efectivamente oficial, que permitirá usar qualquer variante da lusofonia, terá por base um VOLP DC que seja efectivamente lei na língua.
Sublinha-se, também, que não basta, depois de Portugal ter o seu VOLP PE, que se faça uma obra contendo tudo o que aparece no VOLP PB e no VOLP PE, para que possamos ter o dicionário do português universal. Como já escrevi em anterior artigo, o Acordo de 1990 envolve todos os países de língua oficial portuguesa, e o senso comum diz-nos que a língua universal não pode fixar-se só com as variantes de Portugal e do Brasil: terá de ter variantes da língua portuguesa (obedecendo à índole desta) de outros países da lusofonia. Para isso, é precisa a tal comissão de especialistas de todos os países de língua oficial portuguesa para se estabelecer finalmente quais são os termos da língua considerada comum.
A CPLP já mostrou a sua disponibilidade em colaborar nesse objectivo. Depositamos nesta entidade as nossas esperanças, pois tem uma missão muito importante, como animadora da unidade na lusofonia.